20211103

Apontamentos sob a sombra da morte



Acompanhar o processo completo, da chegada do corpo à retirada das cinzas do forno. Entre uma coisa e outra, anotar etapa por etapa, os aspectos técnicos, os rituais, curiosidades. Bem contado, podia render uma boa história. Pena que algum diretor achou que talvez não fosse uma pauta adequada para entreter a família catarinense na edição de um domingo qualquer de 2018 do jornal. Depois de eu ter passado a tarde inteira em um crematório na Grande Florianópolis.

Fui recebido em uma sala no segundo andar de um imóvel com fachada de templo romano – incluindo colunas – e janelas de vidro fumê. Um senhor magro, de camisa por dentro do jeans, sapato, óculos sem armação, sotaque caipira e humor peculiar me atendeu. Era o gerente. Disse ter entrado no ramo em 1996, quando começou em uma funerária. Saiu, não aguentou dois anos fora. “A gente sempre volta, nem que seja como cliente”, piscou, me convidando a descer para um tour.

Pela movimentação no térreo, alguém estava prestes a ir para sempre. A cerimônia de despedida é realizada em um salão com paredes verde-escuro, carpete bege e auditório com 80 lugares. À esquerda, um telão com imagens da idosa falecida. No palco, o caixão com o corpo repousa sobre um altar. Do púlpito à direita, o cerimonialista elogia a mulher por uns 30 minutos. Os 23 presentes se levantam das poltronas marrons acolchoadas e se aproximam do esquife para uma última prece, um último olhar, um último adeus.

Pétalas caem no palco enquanto as cortinas roxas se fecham, “representando o ato final, o encerramento do espetáculo desta vida”, cochicha o gerente no meu ouvido e eu fico em dúvida se é outra piada. Entre abraços e fungadas, ninguém vê o caixão sendo levado por uma esteira até a cremação, em uma sala revestida de azulejos brancos com dois fornos gigantes. “Preferimos chamar de cinerador; a ideia de colocar um ente querido em um forno causa uma certa angústia nas pessoas”, corrige o anfitrião, seguramente falando sério.

Ele explicou que o corpo – com caixão e tudo – é mantido em uma câmara fria até conhecer o forno (ué, não era para evitar a palavra?), o que deve ocorrer em até 72 horas. Antes, é obrigatório verificar se o morto tem marca-passo ou similares e, se for o caso, retirá-los. Polímeros como teflon e náilon, usados em roupas e adereços, também precisam ser removidos, junto com sapatos com solas de borracha. Feito isso e liberados os trâmites burocráticos, as duas câmaras de combustão do forno (de novo!) são ligadas.

Quando a temperatura atinge 800 graus, o operador insere corpo e caixão na câmara primária. A secundária é mantida a 1000 graus para eliminar os odores da cremação. A magia acontece em menos de uma hora. “Quanto mais gordo, mais rápido, porque a gordura aumenta a combustão”, informa o gerente. Um adulto se transforma em, em média, 1,5 quilo de cinzas e resíduos calcinados, que são arrastados com um rastelo para uma gaveta removível na parte central do forno (desisto).

Em seguida, tudo é triturado para uniformizar o tamanho dos grãos que serão guardados em uma urna a ser entregue para a família. A empresa não divulga números, mas o gerente revelou que parte substancial do faturamento vinha dos acessórios. Há urnas para todos os bolsos: mais simples (R$ 200), hidrossolúveis, ou seja, feitas de material que se dissolve na água (R$ 1,5 mil), de resina (R$ 2 mil), metal (R$ 5 mil) e de cristal (a partir de R$ 690). A contratação dos serviços do crematório dava direito a, além da cremação, uso da capela/auditório, velório, cafezinho e a uma urna básica (de vidro ou madeira).

A responsabilidade pelo destino – ou descarte – das cinzas é do cliente, a não ser que ele faça uma declaração por escrito autorizando a empresa a cuidar disso. Aí elas são espalhadas pelo jardim do crematório. Outra opção era pagar por um lugar no columbário, a “sala de memórias” com 92 lóculos (nichos) para guardar restos mortais e visitar no Dia de Finados. De acordo com o gerente, a próxima inovação seria a adoção de um QR Code que, ao ser lido, dá acesso a um “obituário poetizado”, com fotos, vídeos ou lembranças do morto.

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Minha vó sempre dizia que só gente ruim tem medo de morrer. Eu era obediente, ia à missa todo domingo e tirava notas altas na escola: um guri bom dentro do microcosmo a mim reservado quando criança. Mesmo assim, perdia o sono atormentado pela possibilidade de dormir e não acordar mais. Vai ver, eu não era um guri tão bom quanto pensava ser. Nunca fiz terapia para descobrir (também) o porquê disso.

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Nenhum parente próximo havia desencarnado até dezembro de 1980, de modo que a primeira morte que me impressionou foi a de John Lennon. Eu já tinha idade na passagem de Elvis, três anos antes, mas nem liguei, embora entendesse muito melhor o rebolado do rei do rock do que o mundo sem países nem religiões de “Imagine”. A fama do ex-beatle, a banalidade de seu assassinato e aquela capa de Veja apenas com uma ilustração dele e a manchete “Lennon e o nosso tempo” me deixaram muitas noites em claro.

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Do pop, a morte que mais senti foi a de Adam Yauch, dos Beastie Boys, em 2012. Primeiro porque eu era fãzaço da banda, que foi mudando à medida que eu também mudava. E ninguém representava tão bem essa evolução quanto MCA, como ele assinava: o moleque escroto que cresceu e virou um budista engajado em causas humanitárias. Segundo, e mais grave, porque ele tinha 47 anos quando o câncer o levou. É muito triste e assustador quando pessoas da mesma geração que você começam a partir por causas naturais.

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Minha relação com a morte se divide em antes e depois do personagem Sandman, de Neil Gaiman. Uma das irmãs do Mestre dos Sonhos é justamente ela. Esqueça o manto, a foice, a aparência lúgubre. A personagem Morte se veste como uma roqueira e carrega no pescoço um colar com um Ankh, a cruz egípcia que simboliza a vida. É uma jovem sensível, gaiata e gentil, que compreende e aceita todo mundo sem julgar e gosta dos mortais de um jeito que eles começam gostar de si próprios também. Em um dos quadrinhos dedicados a ela, a atriz Claire Danes (do filme Stardust – O Mistério da Estrela, adaptação do livro de Gaiman e Charles Vess) descreve:
A Morte tem corpo de modelo, roupa de poeta e o sorriso de sua melhor amiga. (...) Pensamos na Morte como algo ruim, mas ela é a melhor das companheiras: deixa a escolha bem clara para nós e diz, usando seu exemplo, que ficar obcecados com coisas como violência, cobiça, preconceito e solidão nos impede de estar perto dos outros, de nos divertir e de realizar nossa grande obra. Assim, só desperdiçamos nosso tempo aqui.

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Dos poucos obituários que fiz, um permanece inédito. É o de um velho político que sofrera um AVC e, conforme sugeriam os boletins médicos, sairia direto do hospital para o necrotério. Varei a madrugada batucando o teclado sobre o dito cujo e as controvérsias em que se meteu durante a vida pública para que no dia seguinte, tão logo se confirmasse o óbito, o texto fosse publicado no site do jornal. Pois o figurão se recuperou e está por aí até hoje, todo pimpão. Que bom. Para ele, por motivos óbvios; para mim, porque nada do que eu havia escrito superava o comentário mordaz de um colega: “Mais vascular do que cerebral, fulano foi um acidente na política estadual”.

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Meus familiares e amigos sabem que quero ser cremado. Também sempre imaginei que iria me integrar ao cosmo tendo como trilha sonora Electric, do The Cult, o disco que mudou minha vida – já falei do impacto que o álbum, lançado em 1987, teve para mim em uma edição da descontinuada revista Bizz com esse tema, um dia conto aqui. Agora, pensando melhor, gostaria de me esvair ao som de “Não Estou Nem Aí”, de Arnaldo Baptista, para decolar toda manhã. Mas até lá eu não vou me esconder.

(Extraído da newsletter Extrato. Assine já e garanta o seu exemplar antecipado todas as terças!)

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