20220301

Nunca foi só por quatro milésimos



Talvez fosse a TPM, talvez porque era o último dia capicua (palíndromo de números) do resto de sua vida. Ou uma combinação dos dois fatores. O fato é que acordou com o diabo no corpo. Iria soltar os bichos, meter o louco, tocar o terror. Mas situacionismo não é bagunça, não é coisa que se improvisa. Ela lavou o rostou, ajeitou o cabelo, vestiu uma cropped e começou a andar pelo apartamento para ver se surgia alguma ideia. Nada, sua cabeça estava mais vazia do que a agenda do PR [risos].

Já estava quase desistindo dos planos que ainda não tinha por uma aula de francês no Duolingo quando entrou na área de serviço, escaneou o cubículo com os olhos e se deteve em um ponto: a ponta de uma garrafa de refrigerante diet escapando da lotada lixeira dos recicláveis. Recolheu a pet de 1,5 litro, passou um paninho nela, bateu uma metasselfie na frente do espelho e saiu, um tanto insegura quanto aos resultados da ação apesar de sua crença inabalável no laissez-faire. Seu destino seria o posto de combustíveis a duas quadras do prédio onde morava.

Lá chegando, estendeu a garrafa ao frentista e pediu um litro de gasolina – comum, por favor. A coitada deve ter ficado com o carro no prego aqui perto, pensou o cara. Pensou também em perguntar se a “princesa” iria levar ou beber no local, para descontrair um pouco. Pensou melhor e fez o seu serviço em silêncio. Ela conferiu o preço no mostrador da bomba, puxou uma nota de R$ 10 do bolso do short jeans e lhe entregou, recebendo de volta uma cédula de R$ 2 e uma moeda de R$ 1.

Após 10 tensos segundos imóvel diante do frentista, começou a (adorava esse suposto verbo) performar. Disse que estava esperando o troco. Ele não entendeu e ensaiou um sorriso. Ela continuou inabalável. Explicou que, se o litro da gasolina custava 6,996 e foi pago com 10, ainda faltavam quatro milésimos. O cara sacudiu a cabeça procurando por alguma câmera escondida, aquilo só podia ser uma pegadinha. Então se lembrou da mãe em Ananindeua, na Grande Belém, preocupada com o filho que havia ido embora para o Sul em busca de uma vida melhor. Suspirou e falou que iria chamar o gerente.

— Em que posso ajudá-la? — chegou a autoridade do posto, a simpatia automática mal disfarçando a irritação por ter que interromper a estreia do Figueirense na Copa do Brasil que estava assistindo pelo 4G.

— Quero meu troco correto, apenas — informou ela, repetindo que faltavam quatro milésimos ou “sei lá como vocês chamam essa moeda que inventaram”.

— Mas isso não existe!

— Se não existe, como vocês estão cobrando?

Fosse qualquer um, daria mais R$ 0,05 para a freguesa e retornaria para sofrer com o futebol bisonho do seu time. Mas o gerente era tinhoso, acreditava em meritocracia e sonhava com um Brasil governado com mão dura pelos militares. Para cima dele, não! Ele iria até o fim para enfrentá-la, provavelmente era uma esquerdista mal-comida que não raspava o sovaco nem respeitava quem trabalha duro para gerar emprego e renda no país. Avisou que não iria lhe devolver mais nem um tostão, ela que fosse se queixar em Cuba.

Estava criado o impasse.

Um homem que abastecia um carro popular com resquícios de um adesivo da ex-presidente Dilma Rousseff de pernas abertas na entrada do tanque ouviu a conversa e se meteu: a moça tinha razão, o código de defesa do consumidor lhe dava direito ao troco correto ou arredondado para cima. Outro sujeito desembarcou de um SUV e se aproximou. De terno e gravata, como convinha a um dos nomes da lista sêxtupla para ser indicado a desembargador, não iria perder aquela oportunidade de se promover.

— Sou adevogado — caprichou na pronúncia e ligou a câmera do celular. — Ou o senhor age conforme o império da lei ou será denunciado. O sistema monetário brasileiro estipula que R$ 1 é dividido em 100 partes iguais denominadas centavos. Qualquer interferência nisso se configura em crime de lesa-pátria, pois a moeda é um dos símbolos nacionais, como a bandeira, o hino, o selo e o brasão de armas — blefou.

— Essa é a sua opinião — desdenhou o gerente.

Foi juntando gente para, em uma espécie de justiça poética, apagar o fogo com gasolina. Um nerd calculou que os quatro milésimos embolsados por litro significavam uma diferença de R$ 4 a cada mil litros vendidos, dinheiro que ia para o dono do posto. Empolgado com a audiência, contou que a terceira casa depois da vírgula no valor dos combustíveis foi adotada no Brasil neoliberal de 1994 para copiar os americanos. Uma jovem gritou “entreguista!”. Até que alguém não identificado no meio do bolo berrou a palavra mágica: “Ladrão!”. Começou o empurra-empurra.

A moça aproveitou o tumulto e se arrancou sem ser percebida. À noite, em casa, soube pelo telejornal que as imagens de um quebra-quebra em um posto de combustíveis por causa da política de preços dos derivados de petróleo viralizaram e estimularam reações similares no Brasil inteiro. Cenas de pancadaria, explosões e pilhagens se alternavam enquanto o âncora ressaltava o “caráter apartidário das manifestações”. Como o Norvana, o milésimo de real havia unido todas as tribos.

O movimento evoluiria para passeatas dominicais, que não atrapalhavam o trânsito e atraíam de comunistas a monarquistas, de evangélicos a agnósticos, de funcionários públicos a empresários, de ambientalistas a pecuaristas, de concurseiros a ancaps. Ninguém mais se importava com a reivindicação original, tamanha era a abrangência das bandeiras erguidas ou combatidas. O gigante acordara – e nada indicava que voltaria a dormir tão cedo. Atônita, ela só torcia para que o despertar não resultasse no mesmo fim que as jornadas de junho de 2013.

(Extraído da newsletter Extrato. Assine já e garanta o seu exemplar antecipado todas as terças!)

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