20220321

Sinais (de) que só os loucos sabem



Voltava do Centro. Tinha ido à operadora do plano médico tentar me pendurar no convênio da minha mãe. Talvez em carne e osso meu caso despertasse alguma sensibilidade. A atendente me escaneou de alto a baixo enquanto me ouvia. Mesmo me considerando um loser, era uma profissional. Disse uma frase que começava com “infelizmente” e me encarou, esperando que me despedisse.

Como também sou profissional, jamais havia nutrido qualquer expectativa de que sairia dali com uma carteirinha. Agradeci e me arranquei. Minha vida melhorou demais depois que parei de achar que fosse pessoal algo que nunca passou de indiferença.

Estava parado em um sinaleira, entretido pelo panfleto de um lançamento imobiliário que prometia um monte de facilidades em inglês aos futuros moradores. Para minha consternação, não tinha garage lounge, um espaço no condomínio para as bandas formadas pelos herdeiros das prestações do financiamento ensaiarem com segurança e assepsia. Nem as empreiteiras acreditam mais que um artista decente possa ser forjado nessas condições de higiene.

Mas tinha uma tal de future room, que, pelo que entendi, é uma sala onde crianças aprendem programação para se tornarem developers. Fiquei viajando no destino de uma sociedade que prefere startupeiros a artistas até que mais um “promotor” se postou diante da janela do carro e me fez rever meus preconceitos.

— Boa tarde, senhor!

— ....

— Somos da Igreja do Losango Invertido e estamos vendendo este broche por um real para arrecadar fundos para os brasileiros que foram à guerra da Ucrânia lutar em nome do bem.

O broche era daqueles com uma carinha sorridente amarela cercado por algum clichê antidrogas. Ato reflexo, peguei um Hall’s no console e enfiei na boca. Sem saber como reagir, mexi nos dois volumes dos Freak Brothers que trazia no banco do carona e abaixei o som, uma versão charmosa do DeFalla (com uma grafia bem exótica) para “Linha do Horizonte”, do Azymuth.

Em vez de pousar no azul mais lindo, decolei em uma espécie de vórtex existencial: para quê eu sirvo, para quê serve o que faço, tem alguém interessado no que sei fazer, por que ganho menos do que um monte de gente que me chama de mestre, que sistema é esse que não valoriza o que tenho de melhor, o que as pessoas que admiro fariam no meu lugar, até quando vou ficar contando historinha, então é isso que o destino me reserva?

— Putz, não tenho grana agora — foi a melhor declaração que consegui desembuchar depois de desistir de falar que eu não era contra.

— Nada? Faço um para o senhor por qualquer moedinha!

Tirei os óculos escuros. Ele deve ter visto alguma cor estranha no meu olhar, porque encerrou a promoção sem esperar a resposta.

— Tenha uma boa tarde. Ah, amém!

— Louvado seja! — concordamos em alguma coisa, afinal.

No cruzamento seguinte, reconheci o carro que ia na minha frente – um Kazinho cujo dono fechou o vidro na cara do crente – destruído por um ônibus. Do que restou de seu vidro traseiro, pendia um adesivo de apoio à Lava-Jato.

(Extraído da newsletter Extrato. Assine já e garanta o seu exemplar antecipado todas as terças!)

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