20220308

Carnaval sem começo não tem fim



Quando proibiram a folia gratuita, fiquei na minha; não tenho mais o corpinho que exibia de meia arrastão no bloco de sujos. Quando reprimiram tudo que sugerisse o mais vago vestígio de folia gratuita, continuei na minha; eu ia passar a noite em casa mesmo. Quando quiseram acabar com o feriado, eu já não podia fazer mais nada. Foi o que fiz. Alimentar o ócio enquanto deveria estar trabalhando foi a única transgressão que me restou neste não-carnaval.

As ondas explodiam com força, molhando até quem estava na parte mais alta do costão. O vento nordeste soprava uma mistura de areia e água salgada que turvava a vista. Crianças chapinhavam na beira da praia gelada e mexida. Naquela tarde típica de fevereiro nos Molhes da Barra, o único resquício da festa profana que antecede a quaresma eram os trapos de um abadá de 2020 balançando entre as pedras. Por mim, beleza. Sentado ao pé do pequeno farol, recebendo na cara toda a fúria do oceano, eu só queria esvaziar a cabeça de quaisquer angústias.

Não conseguia entender o que deveria achar da guerra. Pior: não conseguia entender por que deveria achar alguma coisa. Absorto pela alienação, quase não percebi o barulho que vinha do mar.

— Aqui embaixo — disse. — Até que enfim! — resmungou ao me ver de pé na ponta de um rochedo, tentando descobrir a origem da voz.

Era um boto. Recapitulei mentalmente minhas atividades nas últimas 36 horas. Não bebera nem havia consumido nenhuma substância condenada pela Carta Magna. Sabia que estava na cidade onde eles têm nome, mas nem imaginava que falavam também.

— Prazer, Cy. Com ípsilon, please — apresentou-se o animal.

— Podicrê. E aí, sussa? — dei corda.

— Comigo, tudo, contigo é que parece que as coisas andam complicadas — respondeu. — Pensa que não reparei no teu olhar perdidão no horizonte? Que foi, não conhece nenhuma banda que vai tocar no Lollapalooza?

Era só o que me faltava: um boto coach, metido a pop.

— Antes fosse, antes fosse — minimizei.

— Qual é a tua idade?

— Então, no fim do ano vou completar…

— Tô ligado — me interrompeu o bicho. — Tu sacou que virou um velho.

— Não, é que…

— As pessoas da tua idade evitam dizer que no tempo delas é que era bom porque não querem admitir que o tempo delas já passou e, convenhamos, nem era tão bom assim — prosseguiu.

— Não viaja — rebati, impaciente.

Cy não se perturbou.

— O que tu idealizava como felicidade era somente uma burrice inocente, cheia de convicções. Hoje, tu não tem mais certeza de nada e nem assim te sente mais inteligente, só deslocado. Sou teu contemporâneo, já passei por isso. A gente não pertence a esse lifestyle atual movido a cinismo e ironia.

– E daí, onde é que tu quer chegar? — intimei, irritado com a desenvoltura do cetáceo. — O racional aqui sou eu!

— Vou fazer uma analogia com referências do “teu tempo” para ver se tu cai na real — anunciou Cy, impassível. — O povo prefere as mentiras de Renato Russo à verdade de Rodolfo, aquele dos Raimundos. Um planejava cada passo de sua carreira, cada reação que um gesto, uma declaração sua poderia provocar. Outro só agiu com sinceridade, preferindo as privações da fé aos prazeres de uma banda em que não botava mais fé. Um é amado por mentir, outro é ridicularizado por assumir a verdade de seu coração. A farsa é que é uma bênção!

Mal terminou a palestrinha, o boto me encarou com ar vitorioso. Atordoado pelas suas palavras, tergiversei:

— Vem cá, por que tu veio falar comigo?

— Porque escutei os acordes de “Behind The Sun”, da fase em que Red Hot era legal, vazando do teu fone de ouvido. Aliás, o mundo se divide entre as pessoas que chamam de Red Hot e as que chamam de Chili Peppers, as que chamam de Iron e as que chamam de Maiden, as que chamam de Led e as que chamam de Zeppelin, as que… Desculpa, me empolguei: fui com a tua cara e resolvi te dar duas ou três noções de pragmatismo existencial. Ah, e também adorei essa tua camiseta do David Bowie, até a próxima!

Ainda gritei perguntando quem seriam o Renato Russo e o Rodolfo nesta guerra, mas Cy já era apenas uma mancha preta rumando em direção às profundezas atlânticas.

(Extraído da newsletter Extrato. Assine já e garanta o seu exemplar antecipado todas as terças!)

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