20230806

Quem acredita na cultura merece uma taça



Disse um político em apuros com a Justiça que, expostas, as entranhas do poder nunca são agradáveis. Muito menos as da cultura, completará qualquer produtor. Ou as dos mecanismos de captação de recursos para produção cultural, o que dá no mesmo em um cenário onde é duro atrair um mísero tostão para bancar uma reles cantiga de roda sem o aceno de algum benefício fiscal.

De modo que foi aquela sensação de pertencimento quando o convite para uma reunião em que seriam discutidas estratégias para obter patrocínio para projetos aprovados pelas leis de incentivo começou a circular pela cidade. Até quem nunca tinha ouvido falar do promotor do encontro – o que equivalia a quase todo o público-alvo – confirmou presença. Ninguém queria perder a história sendo escrita.

A sala, no casarão tombado que funciona como sede de uma fundação local, encheu de representantes da literatura, cinema, música, poesia, teatro, dança e jornalismo, entre outras atividades que não exigem diploma. Em um canto, havia uma mesa com salgadinhos, café, xícaras, batida de butiá, copos, vinhos, taças e bergamotas. No fundo, em pé, mexendo no celular enquanto os convivas se acomodava, o cara.

Seu nome, junto às palavras “consultoria”, “marketing” e “cultura”, estampava o cartão colocado em cima de cada cadeira. Ele se apresentou, coçou a barba rala e declarou que nem nos sonhos mais otimistas imaginava que tanta gente estava precisando dos seus serviços especializados. “Todo mundo aqui tem uma ideia maravilhosa que não consegue viabilizar”, bajulou. E fez uma pausa para o suspense: “Ainda”.

Explicou que como manifestações artístico-culturais com pouco potencial comercial ou apelo popular não interessavam à iniciativa privada, focaria sua atuação nas estatais. Na semana anterior, inclusive, estivera no Congresso e arrancara dos parlamentares que representam o estado a promessa de boa vontade – “lobby”, piscou – para os projetos por ele indicados. Sua confiança nessa movimentação era impressionante.

Para reforçar o compromisso assumido, mostrou aos participantes uma brochura intitulada “Bancada da Cultura Estadual”, com propostas, autores e valores almejados. A intenção era voltar a Brasília e entregá-la a um deputado federal e a um senador, que a partir de então apadrinhariam a articulação. Os dois políticos pertenciam à base aliada do governo e gozavam de livre trânsito nos corredores dos mecenas em mira.

O impresso encadernado rodou de mão em mão pela sala, provocando suspiros, cobiça & maledicência. Aproveitando o suor para alisar o cabelo para trás e a atenção difusa para continuar com a matemática, ele desenhava números no ar. Segundo seus cálculos, o montante pleiteado pelo coletivo correspondia a menos de 20% do total que o estado deveria receber conforme sua contribuição para o PIB nacional.

As páginas timbradas com a marca de sua empresa descreviam obras, atividades e eventos que, somados, ultrapassavam R$ 10 milhões. No meio de biografias de empreendedores, oficinas para resgatar os saberes tradicionais e cartilhas de receitas culinárias dos imigrantes, destacava-se um projeto dele próprio. Um primor de metalinguagem, oferecia um livro sobre a memória dos projetos aprovados no estado e era um dos mais caros.

Ele brindou – se a artimanha colasse, ganharia no mínimo 10% do destinado a projetos de terceiros, mais o seu na íntegra. Todos o acompanharam – beleza, desde que agilizasse os demais. Sobre a mesa devastada, ficou combinada uma próxima reunião para verificar o andamento do processo. Mas nunca mais houve outra: os proponentes levaram as taças para casa. Errados, não estavam.

(Extraído da newsletter Extrato. Assine já e garanta o seu exemplar antecipado todas as terças!)

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