20230807

A fé se manifesta até onde menos se espera



O incauto transeunte que na sexta à noite vagasse por uma determinada praça no Centro de Florianópolis ficaria intrigado. Entre tantas casas ao redor transformadas em imobiliária, clínica, escritório de advocacia e até emissora de rádio, da única fachada ainda com as luzes acesas e portas abertas ecoava uma algazarra difícil de distinguir. Pelos aplausos, parecia comemoração. Pelo berreiro, uma sessão de exorcismo.

Era a cerimônia de conclusão de um curso de coaching.

No local, funciona uma franquia do autointitulado “maior treinamento de inteligência emocional do mundo”, com 36 unidades em três continentes. O método desenvolvido pela instituição promove “o despertar de gigantes”, seja qual for o aspecto da vida que o aluno queira transformar – como faturar dez vezes mais, criar um negócio de sucesso, ter alta performance, sair do endividamento ou salvar o casamento e a família.

Dezenas de pessoas, muitas com uniforme ou crachá denunciando que tinham vindo direto do trabalho, lotavam a garagem convertida em auditório. Cada uma delas pegava o microfone, gritava o que considerava o propósito de sua “jornada extraordinária”, recebia aplausos entusiasmados e chamava o seguinte para repetir o processo. “Eu sou capaz”, bradou um. “Eu venci”, urrou outra. “Eu estou pronto para liderar”, clamou um terceiro.

Tudo lembrava um culto. Havia um emissário (instrutor), os fiéis (formandos), a catarse (testemunhos) e a indispensável fé incondicional na eficácia do sistema. A diferença era que mesmo a mais mercantilista das religiões promete o sobrenatural, uma recompensa intangível a ser desfrutada pela eternidade. Ali, não: na ausência de qualquer transcendência, salvação e paraíso poderiam ser apenas outros nomes para dinheiro e lucro.

Depois de presenciar um pouco do ritual, o transeunte continuaria sua caminhada com mais dúvidas sobre cobiça e desespero que certezas quanto a aperfeiçoamento pessoal. Não julgaria ninguém, mas não conseguiria entender por que a expertise anunciada no cartaz colado em um poste em frente à casa – “trago seu amor amarrado e apaixonado” – era ridicularizada como se fosse uma crendice sem fundamento.

(Extraído da newsletter Extrato. Assine já e garanta o seu exemplar antecipado todas as terças!)

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