20230804

Todo dia termina velho em cada entardecer



Estava flanando pelo Centro de Florianópolis quando a avistei. Como naquela tarde fria em que ela apareceu para mim, eu me protegia da chuva embaixo de uma marquise na Fernando Machado enquanto torcia para que a nuvem de descrença se dissipasse em um arco-íris de indiferença. Era coincidência demais para eu duvidar que o encanto da primeira e única vez que ela cruzou comigo pudesse se repetir.

Foi em outubro de 2022. Na época, eu curtia uma fase tão desgraçada que vou te contar. Na semana anterior, havia saído de casa quase à meia-noite a pé para comprar um vinho na conveniência do posto de gasolina. Na entrada da loja, um morador de rua me pediu um trocado para comida. Paguei-lhe uma empanada e um pão de queijo. Enrolado em um cobertor, ele me agradeceu e sorriu: “Não te preocupa, irmão, vai dar tudo certo”.

Pois bem. Uma velhinha vinha da Praça XV a passos miúdos e lentos, sombrinha na mão e bolsa agarrada ao tronco pelo outro braço. Ao chegar na frente da lotérica onde eu me encolhia, ela me encarou. “Não quero vender nada, não vou pedir nada”, disse. Gelei. “Só parei aqui porque estava indo para os lados da Mauro Ramos, senti uma coisa boa e vi que era do senhor.” Derreti. A velhinha tinha me desarmado.

Falou que voltava da Catedral, que era viúva e que a irmã e o cunhado lhe faziam companhia. “Ô, minha senhora, eu ando tão desanimado”, ainda tentei reagir. A velhinha, contudo, garantiu: “Pode ficar tranquilo que vai dar tudo certo”. Antes de continuar seu caminho, segurou meus braços, perguntou meu nome e me desafiou a adivinhar o dela. “Tem igreja no Estreito”, facilitou. Matei na hora: Fátima.

Ela piscou para mim e desceu em direção à Hercílio Luz sem virar para trás. Para minha mãe, foi um espírito que evaporou assim que dobrou a esquina. Devia ter seguido a velhinha para conferir – e me apavorar se ela sumisse de repente. Daí minha ansiedade quando a reencontrei com o mesmo passinho, na mesma rua, o mesmo clima meteorológico e vibracional. Sobrenatural ou não, só podia ser obra da Providência.

Fixei o olhar nela até se aproximar de mim. O coração acelerou, a respiração aumentou, a boca secou. Me empertiguei para receber mais uma dose de alento. Mas a velhinha se revelou humana, demasiada humana. Não me reconheceu ou descobriu minha propensão a reclamar de barriga cheia, tornando tudo pior do que realmente está na esperança de sensibilizar o destino.

(Extraído da newsletter Extrato. Assine já e garanta o seu exemplar antecipado todas as terças!)

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