20210922

A última cebola assada para viagem



Veja bem, eu precisava reagir. Eu estava, pode-se dizer, de volta ao reajuste de expectativas já tão elementares. Mas antes, para entender como entrei nessa, vale uma desviada até A Última Casa de Ópio.

É um relato de Nick Tosches para a revista Vanity Fair que virou um livrinho de 96 páginas lançado aqui em 2006 pela editora Conrad. A história começa com o jornalista no badalado restaurante italiano de um amigo em Manhattan. Ele está observando os cheiradores de rolha do ambiente quando lhe é servida uma cebola. Para ser exato, meia cebola Walla Walla (mais doce do que as comuns) assada e coberta com caviar. Custava 35 dólares. Pura, 10.

A mistificação de uma reles hortaliça como uma iguaria preciosa para justificar o preço leva Tosches a refletir. “A nossa era é, cada vez mais, a era do falso conhecimento, o modo pelo qual tolamente tentamos nos diferenciar da maioria medíocre”, escreve. Ele se recusa a participar desse universo de homens ocos como no poema de T.S. Eliot. Encorajado pelo que sente ser o “sabor do sopro da ilimitabilidade”, desencana:

Fodam-se este mundo de cebolas de 35 dólares e aqueles que as comem. Foda-se este mundo de otários pseudossofisticados, incapazes de reconhecer as melhores coisas da vida, quanto mais apreciá-las.
Tosches assinou também aclamadas biografias do roqueiro Jerry Lee Lewis, do ator e cantor Dean Martin, do boxeador Sonny Liston e do chefão do crime Arnold Rothenstein. Todas inéditas no Brasil, onde foi publicado apenas mais um título dele, Criaturas Flamejantes (um excerto de Country: The Twisted Roots of Rock ‘n’ Roll, sua grande obra sobre os primórdios do estilo). Morreu em 2019, aos 70 anos, sem revelar se A Última Casa de Ópio era fato ou ficção.

Procuro e não encontro uma cebola milionária para inspirar meus desatinos. É tanta frustração que fica difícil identificar a gota d’água, o estopim, o ponto que marca a ruptura com perspectivas vazias. Tosches decidiu viver: voou para o Sudeste asiático em busca do único lugar remanescente da milenar arte do consumo das “lágrimas de Afrodite” que batiza a história. Como não tenho bala nem bolas para tal, cá estou, com o compromisso renovado toda terça. Que saudade.

(Extraído da newsletter Extrato. Assine já e garanta o seu exemplar antecipado todas as terças!)

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