20211006

Quando a gente enfim se reencontrar



Cumprido o resguardo para a segunda dose completar a imunização, só penso em retomar. A velha vida, digo, não esse novo normal imposto pela pandemia, acentuado pela cretinice presidencial e edulcorado pela publicidade [anotação mental: como “novo” se tornou uma camuflagem para reproduzir os defeitos de sempre e mais um, a inexperiência, e não apenas na política]. Um combo de ansiedade e dúvidas me atormenta, na cacofonia de orientações preventivas ficou difícil separar informação de ruído ou exagero. Cada um estabeleceu suas próprias regras, tem gente que há meses já está fazendo de tudo. Mas foi para poder voltar a sair sem medo de morrer e matar que me vacinei e não vejo a hora de reencontrar você. Aonde? Aquele bar que servia uns drinques legais ainda existe? Tem que ser algum lugar com mesa ao ar livre? Também não sei que roupa usar, é tanto tempo de moletom com camiseta desbeiçada que quando me visto com jeans e camisa não me reconheço mais. Só sei que vai ser pouco para botar em dia o papo que desde março de 2020 se dissipa pelo whats, e eu detesto a função que desabilita os risquinhos azuis. Então vou contar que penei para me arrumar para esta ocasião especial, lembrar nossa última vez e suspirar, aliviado. Olha, parece que esse dia nunca ia chegar. Nem posso me queixar, tirando um primo não perdi ninguém próximo. A mãe pegou em julho, escapou do pior por causa das duas Coronavac, ela e o pai estão esperando para tomar a terceira, Pfizer ou Astrazêneca. Eu falando em marca de vacina, que merda. Não passei aperto, em nenhum momento meu antigo empregador cogitou reduzir salário com home office rolando. Acabei engordando uns três quilos sem academia. Comecei a fazer uns abdominais em casa, em três meses enchi o saco e parei. Até tentei continuar correndo na rua, mas de máscara é um pesadelo para o fôlego. Caminho umas três vezes por semana, mais para me movimentar do que para suar. No final de setembro voltei com os abdominais para adiar o irreversível. O cabelo não cortei mais, vou deixar crescer, montar uma banda e andar muito louco por aí. Li, leio bastante, não fico sem. De recente e nacional, gostei muito de O Avesso da Pele, de Jeferson Tenório. Foi superelogiado pela crítica, é um filho narrando a história do pai, um professor, família negra como o autor. O racismo entranhado em cada parágrafo de um jeito que dá raiva e vergonha e revolta, livraço. Mais antigo e gringo, Desonra, de J.M. Coetzee, prêmio Nobel e o escambau, já tinha ouvido falar mas nunca lido. É um professor, agora que reparei na coincidência, divorciado que se envolve com uma aluna, é demitido por isso e se refugia na fazenda onde mora a filha natureba, com quem mantinha uma relação conturbada. Péssima ideia, ele se afunda ainda mais na desgraceira. Livro bom não falta, se quiser depois mando uma lista. Fui dispensado em fevereiro, arrumei outro trampo em maio e pedi as contas em julho. Meu recorde anterior era três meses, por acaso para um tipo de serviço da mesma laia. Preciso me ligar, o problema é que se evitar o autoengano quase não sobram opções. Troquei o desalento pela franco-atiradoria, sempre aparece um frila para pagar os boletos. Para desopilar, participo de dois programas semanais no YouTube. Logo eu, que coisa. Mandei o link, deve ter passado batido no meio daquelas figurinhas. Curtição, nada de mais. Ah, e a newsletter, já assinou? Inventei para me obrigar a escrever. Estou animado, não me pergunte por quê.

Agora me fale de você.

(Extraído da newsletter Extrato. Assine já e garanta o seu exemplar antecipado todas as terças!)

Nenhum comentário: