20211013

Jamais deixe de tomar banho de mar



Todo mundo tem uma foto de quando era criança para publicar hoje. Bochechuda, fantasiada, fazendo pose com o brinquedo favorito. Todas muito fofas. O que talvez seja mais difícil escolher é quando deixou de ser criança. A descoberta, a atitude, a percepção que disparou o processo – dali para frente, nada mais seria como antes. Idade não conta, muito menos o ano em que parou de esperar presente neste dia.

Pelos pubianos, beijo na boca, imaginação. Música alta, chave de casa, juízo. Trabalho, cartão de ponto, salário. Tento determinar a despedida da minha infância e só vêm sexo, noite e dinheiro. Que mal, queria algo mais… inocente. Decepcionado, esqueço. É feriado e estou caminhando na praia, nem aí para o céu cinza: é minha primeira vez sem máscara desde fevereiro de 2020. Nada me incomoda.

De um lado, casas e condomínios avaliados em cifras superiores aos ganhos de uma vida inteira de 99% dos cidadãos comuns formam um paredão de muros (a maioria de vidro, pelo menos) interrompido apenas por algum terreno baldio à venda e pelos bares e restaurantes que tomam conta da areia à medida que o centrinho se aproxima. De outro, o mar, com as águas escuras mexidas pelo vento.

Diz a regra que turista vai à praia com qualquer tempo, para aproveitar o investimento. Mas a única presença garantida, mesmo com este clima, é das caixinhas de som das mais variadas procedências. Não demora muito para aparecer uma, trazida por rapazes e moças com copo na mão e também sem máscara. Pelo repertório e pelo volume, trata-se de um caso típico do que os sociólogos do futuro classificarão de “presunção da unanimidade”.

Pode reparar. O fã de gêneros musicais considerados extremos nunca põe sua trilha sonora a uma altura que afetará os desconhecidos ao redor, porque tem noção de que não são todos que curtem. O cara que escuta estilos mais populares, não. Ele chega e bota o som no talo, convencido de que seu gosto é universal. Experimente reclamar: periga receber um “desculpa, você não gosta de música?” em tom passivo-agressivo.

Não corro esse risco, tenho minha playlist. O modo randômico despeja “Choosing My Own Way of Life” no fone de ouvido e fica engraçado ver as pessoas dançando o Suicidal Tendencies que rola somente para mim. Continuo andando, alheio aos sucessos das paradas como as aves que mergulham atrás de peixes e emergem com o bico vazio. Depois de duas, três investidas, parece que estão se divertindo, sem se preocupar com comida.

O vento se intensifica, as nuvens escurecem, a temperatura cai. Marmanjos fogem correndo, a criançada permanece tomando banho. Para qualquer uma delas, a água é imprescindível. Calor ou frio não passam de convenções inventadas pelos adultos para conferir a funcionalidade de se refrescar a uma coisa que deveria estar exclusivamente ligada ao lazer. Bingo! Deixei de ser criança quando parei de entrar no mar sempre que ia à praia.

Nem por isso saio seco. Começa a chover o suficiente para me encharcar enquanto mantenho o ritmo. Sem pressa, tiro a camiseta, levanto a cabeça, respiro fundo e sinto cada pingo misturado com areia pelo corpo inteiro. Volto para casa redimido, acreditando que, de alguma forma, o menino que fui ainda resiste.

(Extraído da newsletter Extrato. Assine já e garanta o seu exemplar antecipado todas as terças!)

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