20211027

Em terra de jacu, quem tem coco é rei



Tudo o que conheço de Caetano Veloso cabe em um post-it e ainda sobra espaço. A ignorância nunca foi empecilho para o ranço. É que cresci em uma época em que ele personificava o establishment, o carteiraço, a entidade que concedia uma fresta de sua luz genial aos estúpidos mortais. Por isso, o espanto quando me vi interessado no disco novo do semideus de Santo Amaro da Purificação (BA). Para surpresa ainda maior, Meu Coco não enche o saco.

O mundo mudou, Caetano também. Ele nem de longe representa mais o inimigo a ser combatido, é apenas um inofensivo vovô de pijama tocando violão em casa. Cada música que lança ainda é um evento capaz de comover os jornalões, mas o fato de mobilizar mais a imprensa tradicional do que as redes sociais é sintomático: hoje, Caetano é enorme somente para o público que consome veículos impressos ou suas versões online. Ou seja, para a geração dele e a seguinte, jamais a atual.

Apesar de – ou justamente por – agora qualquer zé mané ter opinião sobre tudo, o que o Caetano acha da vida, do universo e de tudo mais pouco reverbera. Se isso o incomoda mesmo nove anos depois de seu último álbum solo de estúdio, Abraçaço, ele não passa recibo. Continua verborrágico como no tempo em que era consultado para falar sobre o último pacote do governo, alguma guerra em curso, a matança de pirarucus ou o decote da atriz gostosa, fazendo de Meu Coco mais um “manual do mundo” em sua discografia.

Ao longo de 12 músicas, Bahia, Líbano, Vitória, Europa, Rio, Belém, Natal e Vale do Silício são alguns dos lugares mencionados. A geografia retórico-sentimental só perde para as dezenas de artistas, celebridades, familiares e amigos citados, a começar pelo nome de “GilGal” e “Enzo Gabriel”. O name-dropping abre o disco com Simone na faixa-título, desenterra Peri, Ceci e Ganga Zumba no fado “Você Você” (em que Caetano divide o sotaque português com a cantora lisboeta Carminho) e fecha com Carlinhos Brown na saideira “Noite de Cristal”.

Exceto a canção que encerra o trabalho, registrada por Maria Bethânia no recente Noturno, e “Pardo”, que ganhou versão muito mais solene do que a entoada por Céu em Apká! (2019), as demais foram compostas para Meu Coco. Gravado durante a pandemia no estúdio doméstico montado na maison Veloso, o disco tem uma sonoridade plácida, devagar, à feição do astral “reflexivo” das letras. Eta, eta, eta, aquele cantor faceiro virou um velhinho desiludido com o planeta.

Quase no final, “Sem Samba Não Dá” eleva o ritmo sem alterar o batimento cardíaco e pode fazer sucesso nos shows, com o cantor dançando o miudinho. É o momento mais animado de um álbum que não cansa nem empolga, assinado por um artista muito maior do que qualquer coisa que produza. Em um cenário dominado pelo coro dos contentes, um Caetano pistola como em “Anjos Tronchos” já faz a diferença. Ele não tem culpa de a régua estar tão baixa.

(Extraído da newsletter Extrato. Assine já e garanta o seu exemplar antecipado todas as terças!)

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