O Abril Pro Rock inaugurou a sua nona edição envolto em incerteza. Nos anos anteriores, o festival contou com o apoio maciço dos governos estadual e municipal, o que o desobrigava um pouco de ter lucro de qualquer maneira. No dia 20 de abril de 2001, não. Vagava no ar a impressão de que, caso o evento não confirmasse as expectativas, essa poderia ser sua despedida. O problema representava também um teste: afinal, todo mundo não diz que esse é o evento musical mais bacana do país, adorado pelo público e pela mídia? Então, que ande com suas próprias pernas e mostre força como marca possível de sobreviver sem o aporte de dinheiro público.
A falta de grana ficava escancarada nos itens mais prosaicos, como o cenário do palco secundário. Ao fundo da embolada de PINTO & ROUXINOL e da auto-intitulada “primeira banda drum’n’bass do Recife”, o D. URB (que, diga-se, corria como hardcore), o que se via era o mesmo pano alaranjado do ano passado, só que com um “1” pintado sobre o último zero de “2000”. “Até poderíamos trocar, mas preferimos deixar assim para mostrar a situação”, justificou a produtora Melina Hickson. A solução foi cortar as gorduras e concentrar o parco dinheiro para as bandas. Antes que a discussão se alongasse, o festival iniciou de verdade com a NAÇÃO ZUMBI, colocando o remendo no cenário em sua devida proporção, a de um mero detalhe.
O povo (a essa hora, estimado em 7 mil pessoas) ainda estava entrando – no pique e no Centro de Convenções – quando uma das bandas responsáveis pela existência de tudo isso subiu ao palco principal. Pernambucano tocando pernambucano para pernambucano: abriram com “Quando A Maré Encher”, dos olindenses do Eddie, regravada no quarto disco da Nação Zumbi, Radio S.Amb.A. Claro, mandaram hits da lavra de Chico Science, como “Da Lama Ao Caos” e “Manguetown”, mas é importante salientar a nova fase. Sem o carisma do líder, o grupo se embrenhou por uma massa de groove, na qual o tambor continua batendo forte, cada vez mais costurado pela guitarra de Lucio Maia em “Lo Fi Dream” e “Arrancando As Tripas”.
De volta ao palco secundário, o BONSUCESSO SAMBA CLUB fazia as honras da casa. Roger Man (ex-baixista do Eddie) e quatro percussionistas agregados ao trio básico (baixo, guitarra e bateria) tocavam um samba do crioulo doido, daqueles que qualquer tentativa de catalogar vira bobagem, e o pessoal ia chegando. Terminaram o show e o pessoal ia chegando. Dali a poucos minutos, começaria o RAPPA, e o pessoal ia chegando. A banda foi anunciada e o pessoal ia chegando. Calor. Empurra-empurra. Tumulto. Ninguém estava preparado para tanta gente. Ninguém esperava que o primeiro show do grupo no Recife depois do crime cometido contra o baterista Marcelo Yuka teria tanta procura.
O ar pesado só contribuía para que o som do Rappa ficasse mais contundente. “Bum, bum, bum, o homem-bomba”... De uma espécie de sacada à direita do palco, avistava-se três cenários diferentes: primeiro, Yuka na cadeira de rodas, ao lado do fisioterapeuta, com a expressão distante, as pernas esticadas sobre o pedestal da bateria. À frente, a banda, com o tecladista Marcelo Lobato nas baquetas. Finalmente, o vocalista Falcão agitando incansável, sendo acompanhado pela multidão que se aproximava das 15 mil pessoas (recorde do evento) preenchendo todo o local.
A apresentação alternou sucessos com viagens instrumentais que esticavam as músicas com estilingadas nos neurônios. Como se fosse passada a mensagem e, em seguida, permitido um tempo para se pensar, refletir, absorver o impacto. Silêncio. Yuka é levado à cena. Fala contra os políticos e a violência e a favor do MST. A raiva que ele mostra (perfeitamente compreensível, aliás) é mais assimilada que o discurso. Ao lado, os integrantes do ASIAN DUB FOUNDATION sem entender patavina, assustados com a vibração que teriam de segurar.
Sem canções conhecidas no Brasil, eles tentaram contagiar a audiência na base da empolgação. A banda não parou um minuto, conduzida pelas corridas do guitarrista Chandrasonic e pelos pulos do baixista Dr. Das (ao que parece, o dono do pedaço, o Steve Harris deles). Nos vocais, dois moleques saltitantes substituindo Deedar – segundo o grupo, “ele está dando um tempo”. Sun J abandonava os teclados e dançava até a beira do público, só o programador Pandit G permanecia impassível. Tudo em vão: o público nem esperou as músicas mais fáceis do álbum Rafi’s Revenge, como “Buzzin”, “Naxalite” ou “Free Satpal Ram” (leia-se um Rage Against The Machine com batidas eletrônicas) para ir embora.
A metade da lotação que durou foi premiada com uma sessão de dub letal, baseada no repertório do disco Community Music (2000). Na lateral do palco, integrantes do Rappa, Raimundos e Nação Zumbi presenciavam a gravidade em torrente de “Riddim I Like” e “Colour Line”. Não por acaso, Canisso (dos Raimundos) e Lauro (do Rappa), dois baixistas, eram os mais ligados na performance do seu colega anglo-asiático. Já passava das três da manhã para o DJ AMON TOBIN desfilar seu set de drum’n’bass suave, jazzy, como informa o release. Para quase ninguém, ele inverter o processo a ponto de ameaçar as paredes de divisórias da sala de imprensa com suas freqüências.
Finda a noite, a sensação era de que dificilmente algo iria superar o banquete da sexta-feira. A dúvida foi dissipada com os americanos do QUEERS, a segunda banda do sábado (a primeira foi o DOLORES DEL FUEGO), que começaram com “Rockaway Beach”, homenagem a Joe Ramone: sai o congraçamento de estilos, entra o ritmo duro, reto. Veio o INFIERNO, quarteto carioca com a precisão do Helmet e versão cabeçuda de “Construção” (de Chico Buarque), que interessou até enveredar pelas covers de “Pet Semetery”, da banda do falecido no domingo anterior, e “Sabbath Bloody Sabbath”. A partir daí, a grande questão era que músicas dos Ramones seriam tocadas por RATOS DE PORÃO e RAIMUNDOS – “Commando” por um, “Blitzkrieg Bop” e “Surfin’ Bird” pelo outro.
Assim transcorreu o sábado do Abril Pro Rock, tradicionalmente reservado à música pesada e contando com a devoção das hostes nervosas. Exceção à batida quadrada somente no fim, com os Raimundos encerrando com “Reggae Do Manero” e citando “Liberdade Pra Dentro Da Cabeça”, do Natiruts. Às 11, com menos de 10 mil pessoas, já tinha acabado. A festa iria prosseguir no Armazém 14, na zona portuária do Recife. Lá, rolaria discotecagem de Amon Tobin (fraco) e dos membros do Asian Dub Foundation. Inspirados, os dois MCs do grupo esmerilharam rimas em freestyle, culminando com Pandit G exibindo versões tortas de jóias como “Natural Mystic” e “Roots Rock Reggae”, de Bob Marley, até amanhecer.
Domingo, dia internacional da “leseira”. Menos para a organização, que agendou os locais CIRANDA DO BARACHO e SA GRAMA para o fim da tarde. Sem mim, lógico. Eu estava no hotel, trocando impressões com Akshka e Spex, os dois rappers do Asian Dub Foundation. Funk carioca (acharam “básico”), futebol (pensam que o futebol brasileiro ainda é o tal), política (consideram direitista o primeiro-ministro britânico Tony Blair) e curiosidades (não cantaram os petardos “New Way New Life” e “Change A Gonna Come” no show porque não decoraram a letra). No máximo, pensei, perco o Textículos De Mary e garanto o Jon Spencer Blues Explosion.
Ledo engano. No Centro de Convenções, com o sorriso sádico que é peculiar na categoria, jornalistas me avisaram que já estava na vez do MOPHO. Que a viadagem do TEXTÍCULOS DE MARY foi “uó” (no afã de me impressionar, disseram que cortaram o som da banda abruptamente, só para criar um hype). Que JON SPENCER arrasou. Enfim, que perdi os dois melhores shows de todos os tempos e deveria me amaldiçoar até a sétima geração por isso. Não me deixei abater, embalado pelos peixes hidráulicos e som dos alagoanos. Onde está o teclado que enfeita o disco de cores astrais? Senti sua falta.
Bom, hora do MUNDO LIVRE S/A, lançando seu magistral Por Pouco (só agora, é mole?) em seu torrão natal para o menor público do Abril Pro Rock, 5 mil pessoas. Espaço de sobra para dançar com “Mexe Mexe”, “Melô Das Musas” e “Meu Esquema”. E não se fala mais nisso nem no BRASOV, um Karnak carioca. Pois LOBÃO está à espreita, prestes a surtar. Após 15 minutos de mansidão, um encosto baixou no homem. Ele tropeçou nas caixas de som. Cantou “Help” à capela, para ver se acalmava. Nada. Atirou o pedestal do microfone no fosso dos fotógrafos. Jogou longe a garrafa de vinho que estava em um isopor sobre o pedestal da bateria. Tomou distância, correu e chutou o isopor.
Por falar em universo paralelo, havia ARNALDO BAPTISTA. De camisa rosa com as mangas desfiadas, Arnaldo sentou no teclado e “Sanguinho Novo”, “Sexy Sua”, “Sr. Empresário” e “Ando Meio Desligado”. O lobo, que após o exorcismo buscou a paz com as conhecidas “Rádio Blá”, “Vida Louca Vida” e “Decadence Avec Elegance”, voltou a sorrir com o mutante. Voltaram todos, ao ver a lenda ali, tocando e cantando, um sentimento recíproco para quem estava no palco. Satisfação.
Sim, o festival mudou (não tem nem mais som no Calcinha Preta, o barraco-boate psicodélica que transformou-se na coqueluche do ano passado...). O tumulto no primeiro dia serviu para os organizadores perceberem o tamanho do monstro que criaram – e decidiram enfrentar, recorrendo a bandas que não prometem nada além de música. Eu estava convencido de que o Abril Pro Rock não é mais aquele, quando lembrei do serviço de café da manhã do hotel 7 Colinas, em Olinda, que abrigou o circo do rock. A lesma lerda de sempre.
Um comentário:
que inveja!
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