(reportagem publicada na revista Viagem & Turismo Especial SC, dezembro de 2007)
Praia Grande não tem praia. Nem é grande. A cidade catarinense, a 280 quilômetros ao sul de Florianópolis pela BR-101 (os últimos 20, pela SC-450), destaca-se por estar aos pés da maior concentração de cânions do Brasil. Há mais de 60 deles esparramados entre os parques nacionais de Aparados da Serra e da Serra Geral, na divisa com o Rio Grande do Sul. O mais famoso é o Itaimbezinho – “pedra afiada” em tupi –, um paredão rochoso com 5.800 metros de extensão cobertos por vegetação baixa e recortado por cachoeiras que despencam de seus 780 metros de altura. Imagine se fosse Itaimbezão.
Embora a partir de um metro abaixo da borda do cânion já seja Santa Catarina, Praia Grande sempre perdeu para a gaúcha Cambará do Sul a competência de explorá-lo. Pousadas que vão de aposentos despojados a aconchegantes chalés, condições para a prática de esportes de ação e uma infinidade de roteiros guiados estão mudando a situação. É verdade que seus cerca de 8 mil habitantes não costumam aceitar cartão de crédito nem de débito, o que pode virar uma dor de cabeça quando se descobre que na cidade só existem duas únicas agências bancárias (estatais) e uma lotérica para se sacar dinheiro. Mas é verdade também que não há muito em que se gastar, o que pode se configurar em uma tremenda vantagem.
Reais em espécie tornam-se imprescindíveis para pagar a hospedagem, o combustível (recomenda-se ir de carro) e os passeios, bem como a água e os mantimentos para suportá-los. Refeições são um caso à parte: O menu dos poucos restaurantes restringe-se a comida caseira, churrasco, lanches e pizzas. Tudo bem: praticamente todas as pousadas incluem café da manhã e jantar (igualmente trivial) na diária, que custa em torno de R$ 100 a R$ 200 no verão e em feriadões. E o “almoço” provavelmente consistirá no farnel carregado na mochila, pois nessa hora o turista estará embrenhado em alguma aventura em meio à natureza. Se tudo correr de acordo com o planejado, na volta o cansaço será tanto que não restam outras opções que não comer – sem se importar com o que for oferecido - e dormir.
Três trilhas dão acesso ao Itaimbezinho por cima e por baixo. As duas que correm junto às suas beiradas são acessadas pela entrada principal do parque nacional de Aparados da Serra, a 22 quilômetros de Praia Grande pela estrada de terra e cascalho que sobe a Serra de Faxinal. O ingresso vale R$ 6 e o estacionamento, R$ 5. À esquerda do Centro de Visitantes começa a trilha do Vértice, com apenas 1,5 quilômetro (ida e volta), quase todo pavimentado. Seu trajeto circunda a “boca” do cânion, revelando diversos ângulos das cascatas Véu da Noiva e das Andorinhas, com 700 metros de altura. Por mais que se chegue perto da borda, não dá para enxergar direito onde elas caem, sob risco de exceder o limite de segurança.
Esse primeiro contato direto acaba funcionando como aquecimento para uma paisagem que, acredite, ficará ainda melhor. Depois de uma pausa para reforçar as energias no retorno ao Centro de Visitantes, é a vez de desbravar a trilha do Cotovelo. Uma estradinha de terra à direita indica o início de seus seis quilômetros (ida e volta). Bastam 15 minutos de percurso para que a gigantesca fenda na Terra insinue-se por entre as frestas da vegetação. Em menos de uma hora a estradinha transforma-se em uma trilha mesmo, separada do despenhadeiro apenas por uma corda que o bom senso aconselha a não ultrapassar. Aí se entende por que é o caminho mais procurado do lugar: dali em diante, o cânion apresenta-se em todo o seu esplendor.
O visual é algo capaz de balançar até o mais convicto dos agnósticos. Para descrevê-lo de maneira racional, só apelando para a geologia. Itaimbezinho é resultado de um intenso abalo sísmico e magmático que chacoalhou os arredores entre 150 e 200 milhões de anos atrás. O fenômeno provocou ranhuras profundas no solo. Com isso, os rios da parte superior da serra passaram a desaguar em cachoeiras e corredeiras que esculpiam as rochas, descolando blocos de basalto para o sopé das montanhas e conferindo às fissuras a dimensão de cânion. Do mirante do Cotovelo, comprova-se na prática como essa série de acontecimentos influiu no relevo da região. Da contemplação, surge a curiosidade de saber como é lá embaixo.
Conhecer o Itaimbezinho por dentro é outra história. Enquanto no topo é permitida a visitação somente até às 15h e qualquer um consegue fazer isso sozinho, percorrer o interior do cânion pela trilha do Rio do Boi requer o dia inteiro e a presença de um guia. Muitas pousadas organizam expedições com tal finalidade, mas sai mais em conta contatar um na Associação Praia Grandense de Condutores Locais para o Ecoturismo (APCE), sediada atrás da igreja matriz da cidade. A R$ 20 por pessoa – desde que se tenha condução própria para ir até o posto de fiscalização do parque nacional, a 12 quilômetros do centro, onde se inicia a jornada –, são montados grupos de seis a 12 integrantes para de manhã cedinho enfrentar uma trilha classificada como “de alto grau de dificuldade”.
Transcorrida a picada pela floresta de Mata Atlântica, são 8,5 quilômetros (ida e volta) entre os paredões do cânion, dos quais o maior pedaço é feito sobre os seixos que margeiam o rio e cobrem o seu leito. Travessias com água até os joelhos são constantes. É importante se informar se houve chuva nos dias anteriores, porque o nível do rio pode subir rapidamente. A última enchente, ocorrida neste ano, alargou o traçado das corredeiras e arrastou consigo mais calhaus, produzindo um cenário impressionante: árvores retorcidas, raízes expostas nos trechos ribeirinhos escavados pela enxurrada e pedras de tudo quanto é forma e tamanho. Cachoeiras como a Leite de Moça e a Braço Forte originam piscinas naturais para um providencial banho gelado.
O silêncio na volta acusa: estão todos esgotados e famintos. Afinal, não são meia dúzia de frutas e um sanduíche surrupiado do café da manhã da pousada que vão sustentar o corpo. Nunca R$ 6, pagos no posto de fiscalização – se o ingresso for guardado, pode ser usado para as trilhas do Vértice e do Cotovelo (o contrário, não, porque na entrada principal o bilhete é retido) –, proporcionaram diversão tão duradoura. Em ritmo turístico, com diversas paradas para se refrescar, tirar fotos, descansar e comer, em média em oito horas a trilha do Rio do Boi acaba. E começa o banquete no “café rural”, a poucos quilômetros em direção à cidade.
Na mesa aguardam quitutes locais, como rocambole e quindim (ambos de aipim), paçoca de pinhão, lâminas de banana-da-terra fritas, pães, bolos e geléias, tudo artesanal, delicioso e barato (R$ 13). Com as pernas como se tivessem levado uma surra e o estômago devidamente forrado, é inevitável a preguiça ante a programação do dia seguinte. Os cânions Malacara e Fortaleza, no parque nacional da Serra Geral, também possuem uma trilha incrível, convidam os guias da APCE. Deixe para responder amanhã, por que agora a única coisa em que se consegue pensar é em desabar na cama. Em tempo: Praia Grande tem esse nome por causa dos imensos espraiados de pedras no interior do Itaimbezinho.
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