Era uma vez uma formiga e uma cigarra que moravam no Rio de Janeiro. Como na antiga fábula, uma trabalhava no verão enquanto a outra cantava o ano todo. Por mais alta que estivesse a temperatura, a formiga passava o dia inteiro carregando folhas da rua para o formigueiro. O crepitar dos gravetos secos no terreno onde ia buscar alimento, a algazarra das irmãs diante de um canudo melado de refrigerante caído no caminho, mesmo as imprecações que, mentalmente, rogava contra os impostos leoninos; tudo era abafado pelo chiar incessante e estridente da cigarra. E assim cada uma ia seguindo seu destino, sem maiores questionamentos.
O que pouca gente sabe é que havia outra formiga e outra cigarra – em Santa Catarina. Como suas congêneres cariocas, as duas viviam naquele ramerrão. Nascida e criada na terra, a formiga era funcionária do Estado em regime integral e dedicação exclusiva. Desde que se lembrava, carregava folhas entre repartições e gabinetes. Tinha direitos, licença-prêmio, gratificações, abono-qualquer-coisa. Prestes a ser promovida por tempo de serviço, um pensamento a inquietava com cada vez mais freqüência: não fez metade do que imaginava que faria e fez o dobro do que jamais imaginou que fosse fazer.
Com a cigarra, a situação era exatamente oposta. Para efeito externo, trocou a carreira corporativa na metrópole pelo sonho colaborativo na província ao se mudar para cá. No íntimo, porém, tomou a decisão com base em um conceito pessoal e intransferível de qualidade de vida, que compensava somente as ausências. Não teria contrato, mas não teria chefe. Não teria empresário, mas não teria horário. Não teria muito dinheiro, mas não teria muitas despesas. Aqui chegando, descobriu que seu carma envolvia uma dose bem mais generosa de estoicismo. Não teria nem metade pelo dobro. Por isso, rebolava.
Encerrado o verão, as perspectivas mostravam-se tão desoladoras que a cigarra abriu mão de mais um de seus princípios. Comparado com as concessões que já havia feito para continuar a aventura catarinense, entoar canções de outros bichos em um bar seria moleza. A estréia coincidiu com a Festa do Pinhão, em Lages. No fim de semana seguinte, nevou na Serra. Pelo resto da estação, o frio lotou hotéis e restaurantes, aumentou o consumo de vinho, aproximou e renovou espíritos. Havia demanda para as mais variadas atrações, menos para as versões cicadídeas de sucessos de Kid Abelha, Pato Fu, Nara Leão, Edson Cordeiro, Pantera e demais espécimes de fauna pop.
Em uma noite das mais geladas, a formiga foi ver o show da cigarra. Entrou, pediu uma bebida e ficou encostada no balcão, avaliando o (fraco) movimento. Quanto pior, melhor para suas intenções. Negociou sua saída do funcionalismo e apresentou uma proposta abaixo do valor de mercado pelo bar. Diferentemente de como a vovó já dizia, ela não trabalhava só porque não sabia cantar. Era porque ninguém pagava – com razão – para ela cantar. Sendo dona do lugar, convocaria a si própria para subir ao palco. Não pelo talento, muito menos pela grana, e sim pela realização. A cigarra também estava resolvida: iria se inscrever em um concurso público.
Na mesma época, em uma tarde especialmente quente no Rio de Janeiro, a formiga carioca se encheu.
— Já estamos no meio do ano, não tem lugar para mais folha nenhuma lá em casa e nada de esse calor ir embora! — protestou.
Sem parar de inflar seu abdômen ao ritmo de “Grilo na Cuca”, a cigarra retrucou:
— No Rio não tem inverno...
Pois é, em Santa Catarina tem.
Moral da história: Visite o zoológico de Pomerode. Lá, os animais não falam.
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