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O Natal como ele é

(coluna publicada no jornal Correio Popular, de Campinas/SP, em 25 de dezembro de 2001)

Aquele réveillon prometia. Com mais dois casais, Dilamor e Gina alugaram uma escuna que os levaria de Natal até Fernando de Noronha, onde saudariam o ano vindouro de um jeito doce na Cacimba do Padre. A embarcação deixou a capital do Rio Grande do Norte no dia 22 de dezembro. Em pouco tempo, só os homens estavam curtindo a viagem, incluindo no rol o capitão do barco, um holandês com a pele rosa, esturricada pelo sol inclemente do litoral potiguar, que não parava de contar histórias de sua adolescência herbífumo-uterina pelas quebradas de Amsterdã. As mulheres, enfastiadas, limitavam-se a suspirar e a proferir variações de “não aguento mais ver mar” e “falta muito, papai Smurf?”.

O protesto feminino foi surpreendido dois dias depois. A noite se insinuava no horizonte quando uma pequena faixa de terra quebrou a monotonia visual. “Aquilo é o Atol das Rocas, a primeira reserva biológica do Brasil, criada em 1979. Pelas minhas contas, devemos estar a uns 240 quilômetros da costa do Estado”, apontou o holandês. “É formado por uma coroa de coral sobre um pilar vulcânico, em cujo centro está uma lagoa de água salgada. Sem água potável e com rala cobertura vegetal, o atol é o refúgio para uma enorme quantidade de aves marinhas. A sede da reserva é utilizada por pesquisadores que estudam peixes e aves, e ali também é um importante centro de estudo e proteção de tartarugas marinhas”, prosseguiu o capitão, como se tivesse decorado o Almanaque Abril.

Tanto mulheres quanto homens entenderam apenas a última frase. Aquela silhueta em forma de casinha devia ser a sede da reserva e aquelas três sombrinhas agitadas, os tais pesquisadores
que estudam peixes e aves. Resolveram aportar a uma distância segura dos corais, mas próxima o suficiente para perceber que os gestos que vinham do atol não eram amistosos. “Vocês não podem desembarcar aqui”, gritavam da pequena faixa de terra. “Isso é área militar.” Dilamor, que, embora não reclamasse, também já estava de saco cheio de tanto mar, revoltou-se. “Porra, não vim de tão longe para ser proibido de descer aqui!”, conspirou com a tripulação. “Vou lá, sim! Quero passar o Natal no Atol das Rocas.”

Pegou um saco plástico e nele enfiou uma garrafa de uísque e um torrão de mais ou menos 70 gramas do mato que a Soninha gosta. E se atirou na água, uma vez que a única maneira de chegar até o atol seria a nado, pois os corais impediam o uso do bote inflável. Gina, na murada da escuna, não sabia se pedia para ele voltar ou se torcia para que ele se entendesse com os caras e sinalizasse com a permissão para que todo mundo deixasse aquele barco “miserável”. Iluminado pela lua cheia, Dilamor seguia compenetrado em seu propósito de vencer os 300 metros que separavam o chacoalhar do barco (nem jogar futebol de botão direito ele conseguia) daquele porto seguro. A uns 200 metros da costa, ele pôde ver melhor o que lhe aguardava: três homens, que continuavam a gritar para que ele se afastasse.


Cada recomendação funcionava como um revigorante para as forças de Dilamor, que apertava os lábios em torno da ponta do saco plástico e dobrava o ritmo de suas braçadas. Finalmente, chegou à terra, tomando cuidado para que o costão bravio não avariasse suas oferendas. O trio já esperava com cara de reprovação. Antes que eles dissessem qualquer coisa, Dilamor desamarrou o saco. Para o primeiro, jogou a garrafa. Para o segundo, aquele estranho pacote do tamanho de um sabonete. O terceiro, de mãos vazias, gritou: “Papai Noel!”. E, nesse instante, Dilamor compreendeu que o espírito de Natal é algo muito poderoso, capaz de suplantar até os mais profundos ressentimentos de quem não ganhou nenhum presente da gente.

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