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O Natal como ele é II

(coluna publicada no jornal Correio Popular, de Campinas/SP, em 24 de dezembro de 2002)

No último Natal, vimos como Dilamor descobriu, em pleno Atol das Rocas, que um espírito elevado é capaz de suplantar até os mais profundos ressentimentos de quem não ganhou nenhum presente da gente. Neste ano, a mensagem divina nos leva até a Penitenciária Estadual. Na cozinha do tenebroso casarão conhecido como Cadeião da Trindade, escreveu-se uma das mais impressionantes páginas da história do cristianismo. Naquela noite revestida de significado foram plantadas as sementes que desabrochariam na conversão de Guido Copertone. Ou: cada um faz o bem como bem entende.

Sedentário, relapso e cafajeste, aos 23 anos Copertone portava-se como um completo parasita. Jovem criado no tucanato, viu na eleição do pai como deputado a chance de descolar uma boquinha no serviço público. O velho ficou no dilema. Descendente direto dos italianos que desbravaram o Sul do Brasil, uma gente honesta e trabalhadora, que ria das adversidades e acostumada a dizer “obrigado” no lugar de “quanto custa?”, não iria permitir que um capricho do júnior jogasse sua biografia na lama. Ao mesmo tempo, movia montanhas se necessário para atender às vontades do filho. Limpou sua consciência arrumando uma vaga como cozinheiro-chefe dos detentos. Se sobrevivesse na função, o guri provaria ter herdado a fibra dos antepassados. E aí, quem sabe, seria promovido a estafeta em uma repartição qualquer, sem nenhum ônus para a reputação familiar.

E lá se foi Copertone, 1,60 de altura, ser chamado de “mestre” pelos internos já domesticados, que reuniam condições de civilidade suficientes para coexistir entre facas e óleo quente sem pensar besteira. “Trate-os como animais”, aconselhou seu pai antes de abandoná-lo na porta do Cadeião. No primeiro dia, botou em prática o ensinamento. Um polaco magro e alto, que picava tomate, deixou cair três rodelas no chão. Copertone, do outro lado da cozinha, gritou para que todo mundo ouvisse: “Se liga, seu (palavrão que nem o marginal conhecia). Na próxima, é a casa que vai cair aqui!”. O cara, condenado por ter matado com 115 punhaladas o patrão que o despediu, abaixou a cabeça sem olhar para o cutelo que manejava e murmurou um “sinsinhô, mestre”. Copertone sentiu-se em casa.

A jornada na cozinha do Cadeião começava às 4 da tarde e durava 24 horas, com folga nos dois dias seguintes. Nesse esquema de três turmas se revezando, Copertone entrou na escala de 24 de dezembro. Chegou mal-humorado, mais pela ausência de TV a cabo do que por virar o Natal naquele muquifo. Às 2 da manhã, com todos dormindo no quartinho anexo aos fogões, ele se levantou, decidido. Ligou para o seu chapa Cabelo e implorou por vodka. Em menos de meia hora, o amigo conseguiu atravessar três garrafas. Em silêncio, Copertone tomou uma dose. Duas. Na terceira, acordou a rapaziada dizendo que era o Papai Noel. Mandou os presidiários fazerem fila, que iria distribuir o elixir.

Dezesseis homens, um atrás do outro, pacientemente esperavam pelo seu quinhão, a tampinha da garrafa com um gole de bebida. Às 6 horas, os criminosos riam e choravam e abraçavam Copertone, soluçando que aquele foi o melhor Natal que passaram no Cadeião. Zezinho Ninja, emocionado, desmanchou-se em gratidão: “Mestre, se quiser um som novo pro carro, é só me chamar.” O tempo passou e Copertone encontrou sua vocação, tornando-se policial civil. Certa noite, capturou um bandido roubando a casa de um ex-governador envolvido no escândalo dos precatórios. Segurando o meliante pelo cangote, reconheceu-o. Então, em vez de lhe aplicar os óculos árabes (a maior humilhação que um homem pode sofrer), lembrou-se da cumplicidade etílica e apenas lhe desferiu um tiro em cada joelho. Com o butim do assalto, ligou para Cabelo e enfiaram o pé na jaca.

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