20120417

CAP 3 | A inspiração em forma de ovo


Seis mil cruzeiros – o equivalente a um salário mínimo – por uma corrida do centro até Canasvieiras. Para os turistas, uma mixaria: seis dólares. O que o guia não contou a eles é que a estrada havia sido construída pelos internos da Penitenciária Estadual em 1952. A mão de obra, recrutada a mando do governador Irineu Bornhausen entre os detentos com bom comportamento, compunha-se quase que integralmente de condenados a crimes passionais. Em matar, os caras eram especialistas. Nem que fosse o serviço.

Após uma hora de sacolejo inclemente, o táxi com os Beatles percorrera apenas um terço do trajeto previsto. Crente de que “insondáveis são os desígnios de Ganesh”, Harrison aceitava o arremedo de rodovia como o carma que os deuses lhe reservaram. Seus mundanos colegas, porém, estavam prestes a explodir. A súbita aparição de totens disformes à beira da serra de Santo Antônio dissipou a reina que já se insinuava.

— Olhem aquilo! — exclamou Lennon, referindo-se a um troço que, conforme o ângulo, tanto poderia representar um cachorro quanto uma máquina de costura ou um foguete. — Tenho que conhecer o autor!

Ou melhor, a autora. Pintora, desenhista, escultora, tapeceira e poeta, a incipiente Eli Heil estava causando furor no cenário artístico nacional com a utilização de saltos de sapato, tubos de tinta, canos de PVC e demais materiais inusitados para forjar seu universo particular. Ao se deparar com os Beatles, a ex-professora de educação física recitou:

— A arte para mim é a expulsão dos seres contidos, doloridos, em grandes quantidades, num parto colorido.

— Ela fala! — admirou-se o músico, confundindo criadora e criatura.

O encontro com a palhocense multimídia foi o catalisador de uma das mais famosas canções de Lennon. Ele tinha três ideias, nenhuma boa o suficiente para resultar em um refrão memorável. A primeira brotou de uma sirene que ouviu em sua casa em Weybridge, originando o verso “mister city Policeman sitting”. A segunda remetia a uma melodia pastoral a respeito de seu jardim. A terceira era uma quadrinha boba sobre se sentar em um floco de cereal.

O inclassificável trabalho daquela pequena mulher o libertou das amarras estéticas, deixando-o à vontade para juntar tudo e inventar imagens absurdas (“semolina pilchards”, “elementary penguins”), palavras sem sentido (“texpert”, “crabalocker”) e, claramente influenciado pelo “mundo ovo” de Eli Heil, figuras surreais (“eggman”). Como não sabia dizer “berbigão” em inglês, foi de morsa mesmo. Nascia “I’m the Walrus”.

A Índia prometia.

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