20120423

CAP 4 | Nem tudo é o que parece ser


A conversa com a “garota com olhos de caleidoscópio” – como Lennon carinhosamente apelidou Eli Heil – rendeu, mas não era exatamente o tipo de distração que os Beatles procuravam em sua excursão pelo terceiro mundo. O guia tranquilizou-os, garantindo que ia lhes mostrar um lugar onde, em tese, iriam se sentir em casa: a praia dos Ingleses, cujas versões sobre sua denominação perdiam-se entre imaginação, memória popular e tradição oral.

Os mais antigos juravam que piratas a serviço da velha Albion haviam fundeado no extremo noroeste da Ilha de Santa Catarina para atacar a sede do povoado de Nossa Senhora do Desterro, em 1689. Outra corrente acreditava que o motivo era um londrino ter sido o primeiro morador da área. O mais provável, no entanto, é que o nome seja uma alusão aos sobreviventes do encalhe de um submarino amarelo do Império Britânico nas suas águas rasas que ali se estabeleceram.

O fato é que, de inglês, o local reproduzia somente a animosidade com os argentinos, os primeiros a valorizarem o seu potencial turístico. Consta que Lennon, inclusive, ao se encrespar com um portenho por causa de uma nativa, teria dito para ele cuidar melhor do arquipélago das Falklands (“las Malvinas son nuestras”, esbravejou o hermano) em vez de dar em cima da mulher dos outros.

Bem diferente do suntuoso e nababesco resort na Ponta dos Ganchos em que McCartney já se refestela enquanto aguarda a hora de seu show em Florianópolis, as acomodações dos Beatles nos Ingleses não ostentavam nenhum conforto. O maior luxo da meia-água que os abrigou era a iluminação, a cargo de uma pomboca a querosene. Em vias de perder o autocontrole obtido em anos de meditação oriental, Harrison manifestou-se com a única palavra que poderia ser compreendida pelo monoglota que os acompanhava:

— Índia! — exasperou-se. — Pô, por que tu não disse antes, o istepô?! Tem uma carrada de índias aqui pertinho!

A estada na reserva dos Carijós só não foi totalmente frustrante por causa de um curió. O pássaro de plumagem sobrevoou os Beatles durante toda a trilha da banda pelos variados biomas do território aborígene. Enlevado pelo canto da ave, McCartney pegou o violão para transcrever a melodia e criou “Blackbird” – uma prova de que suas canções mais arrebatadoras vêm de forma espontânea, como se letra e música brotassem sem esforço algum da parte dele.

Índio mesmo, de cocar e tacape na mão, eles não viram nem nos folhetos distribuídos pelas simpáticas “carijozetes” na recepção. Não que se importassem com isso. Escolheram aquele país devido a Maharish Mahesh Yogi, e os sermões do guru indiano jamais mencionaram o fator silvícola como indispensável para alcançar uma consciência superior.

O guia é que estava inconformado. Rancoroso, torcia para que viesse uma construtora gaúcha, cercasse a bugrada ausente e em volta erigisse um loteamento cheio de requinte, glamour e garrafas de vodka vazias na calçada. No que dependesse dele, seus clientes iriam, sim, elogiar sua presteza.

— Esses carijós que se arrombem — desculpou-se. — Amanhã a gente vai em uma aldeia indígena de verdade; Guarani, Kaigang ou Xocleng, a seu critério.

— Xocleng! — Lennon entusiasmou-se com a onomatopeia.

No dia seguinte, o guia colocou o quarteto em uma Kombi e pegou a BR-59 (futura BR-101) para o sul do estado.

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