20211221

Medo e delírio na agência lotérica



Lotéricas cheias significam mega-sena acumulada ou, depois que elas viraram postos bancários estatais, dia de pagar conta. Como o bolo desta semana é de apenas R$ 6,5 milhões e a maioria dos boletos já venceu, a lotação significa também que o desemprego abunda. Eu estava em algum ponto difuso da intersecção entre essas três variáveis quando resolvi investir R$ 4,50 para mudar de vida.

Tão banal, o ato representaria uma quebra de paradigmas. Até então, eu tinha como regra me arriscar somente em cifras superiores a nove dígitos. A lógica é a seguinte: se a chance de ganhar uma vez com uma aposta simples é de 0,000002% (1/50.063.860), menos ainda é de isso acontecer duas vezes. Então, se for para queimar o cartucho da sorte desta encarnação, que seja por muito.

Essa foi a única simpatia que desrespeitei. Sou um animal de rituais, critérios e dogmas. Um cartão com seis dezenas e nada mais. Nunca números sorteados no concurso anterior. (Sei que a probabilidade do 13 sair na quarta e no sábado é a mesma que no mês passado e daqui a 20 anos, me deixa.) E acredito na Justiça Divina como fator determinante para escolher onde apostar. Quanto mais desfavorecido o lugar, melhor.

A lotérica do terminal central de ônibus – ponto de convergência do povo trabalhador e guerreiro – parecia ser o local ideal para comover a Fortuna. Não foi uma boa ideia. Não pelas oito pessoas na minha frente, e sim pela classe delas. A agência era frequentada por gente com pinta de ser mais pobre que eu. Logo, seria mais justo que ganhassem, não eu. Tudo bem, eu jogo para poder sonhar, não para ficar rico.

Peguei um cartão, dei uma espiada no último resultado (para não repetir os números) e fiquei analisando meus concorrentes. Exatamente antes de mim, uma mãe arfava com a filha no colo. Um senhor carregando uma sacolinha de farmácia, duas adolescentes com uniformes de escola pública, um casal inter-racial, um motoboy e uma manca (cuja deficiência só percebi quando claudicou em direção ao caixa) completavam a penca.

Todo mundo olhou para trás e fez festinha para a menina. Entretanto, ninguém cedeu a vez para a mulher que a carregava. Sorri. A criança achou que fosse para ela. Era de contentamento. Por descobrir que, independentemente do resultado e até mesmo de jogar, eu já tinha conquistado alguma coisa de muito valor. Todos ali precisavam mais do que eu, mas não mereciam mais do que eu.

(Extraído da newsletter Extrato. Assine já e garanta o seu exemplar antecipado todas as terças!)

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