20220622

Ruim como músico, pior como ser humano



Muito tempo atrás, quando era feio bancar o ignorante em público, fui convidado para ser jurado em um concurso musical.

Sempre achei que artista que se preze não participa desse tipo de coisa. Pelo simples fato de que costuma dar em nada. Ninguém se lembra de quem venceu e os contratos para exposição, single e clipe caducam mais rápido do que o interesse das empresas patrocinadoras. Contanto que a marca obtenha a divulgação desejada, tanto faz se o resultado realmente ajudou alguém a adiar o anonimato. Não, obrigado.

Ainda bem que não sou artista nem recuso propostas sem ouvi-las. Havia 500 motivos para eu topar. Por mais merreca que (já) fosse, era a oportunidade de arrancar dinheiro de uma corporação fazendo o que eu faria de graça em uma mesa de bar. Ademais, não deixava de representar um reconhecimento, um suposto degrau em minha então inexorável ascensão profissional. No mínimo, poderia ser divertido.

Donde acabei compondo o júri de uma competição entre bandas promovida por uma fabricante de balas refrescantes em uma casa de shows paulistana. Um consagrado jornalista cultural e um integrante de um quarteto emergente na cena local dividiriam comigo a responsabilidade de avaliar as concorrentes. E os acepipes – rosbife de lombo defumado e tomate seco enrolado com rúcula – servidos pela organização.

Tudo apontava para mais uma noite de congraçamento do pop nacional regida pelo fair play. Os candidatos ao estrelato seriam julgados nos quesitos letra, música, arranjo, interpretação e apresentação. Deveríamos preencher as cédulas de votação com notas de 5 a 10 para emprestar um ar de alto nível à disputa e não correr o risco de desagradar potenciais consumidores do drops com zeros inconvenientes.

As cinco inscritas tinham que tocar duas músicas cada: uma própria para a qual ninguém ligaria e um cover que conquistasse a plateia de cerca de 300 ganhadores dos ingressos distribuídos pela rádio parceira. A primeira mandou “Top Top”, dos Mutantes. A segunda, “Don’t Look Back in Anger”, do Oasis. O rockabilly da terceira e o raimundosbronwzumbeatjr da quarta também não empolgaram.

A última, dona da maior torcida no recinto, não decepcionou. O guitarrista sacudia a cabeleira rala ao ritmo de um solo que não existia e uma criatura saracoteava com o microfone como se fosse um Silvio Brito bêbado em um forró universitário. Ninguém conseguia entender se o que estavam maltratando era autoral ou alheio, apenas que não era exatamente aquela a acepção do verbo “executar” do regulamento.

Conferi minhas notas com os colegas. A segunda banda vencera de forma unânime – e pelo mesmo argumento: pelo menos eram moleques imberbes, com a vida pela frente para descobrirem outra vocação. Anunciada a decisão, o pai de um dos adolescentes premiados subiu ao palco e ergueu o filho, em uma comemoração que prometia se estender pela viagem de volta até a cidade natal deles, Bariri.

Resignados, os demais aplaudiam. Menos os recalcados do quinto grupo, que apontavam para nossos lugares no mezanino com sinais de que estávamos comprados. Reagimos ao protestos com elegância, jogando-lhes as pedras de gelo de nossos uísques. Na saída, enquanto os vitoriosos guardavam os equipamentos, o vocalista perdedor os intimidava com o coro de “KLB! KLB!”.

Hoje percebo que estava diante de um precursor. Anos antes de se tornar hábito aceito e até estimulado pelas parcelas mais bem-remuneradas da sociedade, ele já não tinha nenhuma vergonha de passar vergonha. Por curiosidade, pesquisei seu nome para ver no que havia virado, suas opiniões, sua visão de mundo. Incrível, não falha nunca! Ele era ruim como músico, mas continua sendo muito pior como ser humano.

(Extraído da newsletter Extrato. Assine já e garanta o seu exemplar antecipado todas as terças!)

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