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O Natal como ele é III

(coluna publicada no jornal Correio Popular, de Campinas/SP, em 21 de dezembro de 2004)

Das decisões que envolvem o Natal, aquela foi a mais fácil. A escolha de Idiomar deu-se praticamente por aclamação. Afinal, entre os homens da família, era o único com condições – ou espírito esportivo – para encarar tamanha responsabilidade sem frustrar as expectativas da parentada. O sogro não tinha mais estrutura mental para suportar o desafio. O cunhado desmoralizou-se na última vez em que desempenhou a função. Sobrou ele para atuar como Papai Noel na comemoração da noite de 24 de dezembro. Conformado, exigiu apenas que distribuísse os presentes também para os adultos. Seria sua oportunidade de, sob a obrigação de fazer algum comentário gracioso à medida em que chamaria os donos de cada pacote, dizer poucas e boas para aquela cambada de cínicos.

Sua mulher, Dionéia, só esperou pela confirmação do marido para conjugar seu verbo predileto, comprar. No caso, o figurino do Papai Noel. Achou o tradicional uniforme vermelho e branco no camelódromo pela bagatela de R$ 19,90, incluídos o cinto preto e a barba postiça. O preço baixo embutia um senão – e não era o fato da inscrição "made in China" na etiqueta levantar a suspeita de uso de mão-de-obra infantil na confecção: a roupa era toda de feltro, tecido que proporciona a quem o veste a sensação de que até o inferno deve ser mais refrescante. Idiomar experimentou a peça, notou que o manequim tinha uma bunda enorme e, já suando, pensou na felicidade de sua filha de 3 anos ao receber o triciclo tão desejado diretamente das mãos do bom velhinho.

A pantomima envolvia toda uma logística. Idiomar começaria a ceia à paisana, representando papéis muito mais difíceis e demorados do que o disfarce para o qual estava escalado. Papai Noel não durava três horas e aparecia uma vez por ano; já as falas para marido, pai e genro exigiam decoreba constante. Em determinado momento, ele alegaria ter de sair para comprar qualquer coisa (“um elmo”, pensou) e sumiria, reaparecendo fantasiado e com a indefectível risada. A cumplicidade dos demais adultos estava assegurada, o que o deixava ressabiado era o sobrinho e afilhado Maiolo. O peste de 8 anos não iria engolir essa história e, com certeza, faria de tudo para sabotar o plano.

Chegou a noite derradeira e tudo ia correndo surpreendentemente bem. A filha, Jaqueline, ficou maravilhada ao descobrir que a cartinha que mandara três meses antes com o seu pedido funcionara. A sobrinha, Aline, de 4 anos, não se importou com mais nada depois que ganhou sua casinha de boneca. Maiolo, que ameaçou desmascará-lo ao puxar sua barba, foi domado a base de beliscões dados na surdina. Os altinhos escutaram os desaforos de Idio (como o chamavam, com a tônica no primeiro “i”) sem tirar o sorriso do rosto. À mulher e à sogra, disse que foram muito linguarudas no ano que passou. O cunhado, bêbado, respondeu ao insulto de “parasita” com um arroto. A concunhada teve sua gordura denunciada. E o sogro foi avisado para não esquecer mais de tomar seu remedinho.

Os estrategistas só não pensaram na retirada do Papai Noel. É claro que Maiolo quis acompanhá-lo até o portão de casa. Sem outra alternativa, o Papai Noel acabou no meio da rua. A idéia de Idiomar era aguardar a poeira baixar, tirar aquela roupa insuportável e voltar dizendo que não achara o elmo que procurava. Mas outras famílias o viram caracterizado e o chamaram para encantar também os seus Natais. Ele passou a noite toda de casa em casa, levando alegria e bem-aventurança. Quando terminou, o dia raiava. Bateu no portão uma vez. Duas. Na terceira, Dionéia arremessou a perfume na sua cabeça, aos gritos de “canalha, nem no Natal abandona a farra!”. De nada adiantaram os argumentos de Idiomar: “Mas Néia, que nóia é essa?”. Ela estava convencida. No próximo dia útil, iria entrar com o pedido de divórcio.

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