20190225

Ninguém solta a mão de ninguém



Porque é segunda-feira, está um tempinho de bosta e você não pode deixar de dizer, meu amigo, que uma nova mudança em breve vai acontecer, é prohibido mala onda. Nem vem que não tem. Por maior que se revele a tristeza, ela será enterrada pela alegria que atravessou o mar e ancorou na passarela. Como fez Gilberto Gil em 2003, na homenagem aos 22 funcionários da Organização das Nações Unidas (ONU) mortos em um atentado em Bagdá. Tudo foi montado para criar um ambiente de lamentação e incertezas; um baixo astral de dar dó. Só não contavam com a música.

A cerimônia, marcada para 19 de setembro daquele ano, exatamente um mês após o ataque terrorista, coincidia com a celebração da Paz Internacional. Estavam previstas desde exposição de fotos das vítimas enquanto seus nomes seriam lidos em ordem alfabética a velas acesas na penumbra do hall da sede da entidade, em Nova York. Sob os buracos da bandeira azul da organização retirada do prédio destruído pelo carro-bomba, o secretário geral Kofi Annan reverenciou a memória das vítimas com um poema do inglês Stephen Spender: “Nascidos do sol, eles viajaram por instantes em direção ao sol/ E deixaram o ar fulgurante assinado com suas honras”...

Derramado o rio de lágrimas provocado por tantas lembranças doloridas, era hora de animar os presentes, de levantar o ânimo. De, nas palavras do anfitrião, chamar “um artista com consciência, um ativista com um dom, que oferece ao mundo uma música que tenta dar poder às pessoas”. Era hora de Gilberto Gil. Ao lado de um percussionista e um guitarrista, o então ministro da Cultura mandou “Filhos de Gandhi”, “Aquele Abraço”, “Não Chore Mais” e “Imagine”. Os pés marcando a batida no chão soterravam os soluços. As fungadas, cada vez mais raras, eram substituídas por onomatopeias com a intenção de acompanhar as letras.



Aos primeiros acordes de “Toda Menina Baiana”, os tambores que Annan costumava escutar na infância em Kumasi falaram mais alto: o ganense dirigiu-se ao palco e se atracou com o primeiro atabaque que Deus deu, que Deus dá. Enternecidos pelo primeiro carnaval (primeiro pelourinho também), canadenses, americanos, brasileiros, iraquianos, iranianos, egípcios, filipinos, espanhóis, jordanianos e ingleses mostraram santos e encantos, jeitos e defeitos. O planeta regido pelo mesmo groove – nem que apenas por um instante.

Annan morreu no ano passado. Gil não quer mais discutir. Rebate penúria, fúria, clamor e desencanto com a impaciência e falsa resignação encerrada em um simples “OK OK OK”. Cada vez mais preto velho, ele não perde tempo nem energia com o que não é afeto ou afago.

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