20220704

Cuidado com o que você deseja



Queria ser cientista. O universo de tubos de ensaio, pipetas e bicos de Bunsen o fascinava. Vislumbrava-se vestido em um jaleco branco, o nome bordado no bolso, a varar noites no laboratório. Imaginava-se descobrindo a cura do câncer e já tinha na ponta da língua o que diria quando fosse entrevistado no Fantástico.

A ilusão durou até perceber que detestava Química Orgânica e, pior, que não sabia o que faria na universidade. Acabou entrando em um curso de Humanas. Daí para deixar o cabelo crescer e trocar sua antiga vocação pelas lições de guitarra foi mais rápido do que a mitose de células doentes. Virou roqueiro.

Montou uma banda. No início, esmerou-se em aprender os clássicos de seus artistas prediletos com a maior fidelidade possível. Seguro de suas habilidades, partiu para as composições próprias. Uma, duas, três músicas e surgiu um repertório para mesclar com covers e se arriscar em um palco.

A estreia rolou em um festival no campus. Claro que o público vibrou muito mais com o hit que a banda reproduziu do que com suas canções autorais. Contudo, no dia seguinte alguma coisa havia mudado: sentia-se mais popular entre as garotas. Resolveu trancar o curso e se dedicar integralmente à arte.

De cara, mandou o baterista embora. Era seu amigo e tal, mas ele não iria abdicar de outro sonho por causa de meia dúzia de travessuras compartilhadas na adolescência. Apesar de tocar tão mal quanto o ex-titular, o substituto tinha um pai abonado que bancaria estúdio e impulsionamento nas redes sociais.

A faixa de trabalho da banda viralizou. O número de seguidores e curtidas e visualizações e streamings superou a marca do milhão. O refrão caiu na boca do povo, rivalizando com os sucessos dos ídolos enquadrados nos pôsteres que ele colecionava. A vizinha o reconheceu no elevador. Estava acontecendo!

Assinou com uma mega-agência de talentos. Graças ao marketing agressivo, portais o procuravam para falar de namoro, política, moda, gastronomia e, eventualmente, música. Precisou contratar um assessor para cuidar da agenda. Saiu em sua primeira turnê nacional, lotando ginásios e casas noturnas Brasil afora.

Distribuiu autógrafos, teve o nome gritado por multidões, interagiu com groupies. Só não conseguia se livrar do fantasma que – mesmo com a fama, o dinheiro, a adulação, o sexo fácil e a euforia das drogas – vinha lhe assombrar a cada noite em um quarto de hotel diferente: o Grande Vazio que insistia em preencher seu coração.

Decidiu largar tudo e voltar ao que supunha ser uma vida convencional. Mudou de ideia tão logo precisou se comportar como um adulto. Retomou a banda para gravar um acústico. Demitiu o vocalista. Lançou outro disco, desta vez ao vivo. Participou de collabs, engajou-se em ações sociais, revelou intimidades.

A receptividade foi pífia. A mídia não se interessava mais por ele, as fãs não formavam fila na porta de sua suíte, nem os traficantes lhe davam mais desconto. O único que continuava o tratando como alguma deferência era o porteiro de seu prédio, sempre diligente e atencioso:

— Ei, o senhor está com o cofrinho aparecendo!

Ele levantou a calça e sorriu, aliviado. Depois de todos esses anos, experimentava a sensação de estar realizado, de não dever nada aos caras que tanto admirava. Finalmente, a decadência tinha chegado.

(Extraído da newsletter Extrato. Assine já e garanta o seu exemplar antecipado todas as terças!)

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