20230224

Foi um streaming que passou em minha vida



Seria “o maior Carnaval de todos os tempos”. Superaria até o de 1919, quando o povo tomou as ruas para celebrar o fim da gripe espanhola. Agora, a festa entraria para a história por ser a primeira após termos nos livrado não de uma, mas de duas pestes: a epidemia que impediu sua realização por dois anos e aquela aberração. Como eu não precisava de nenhum pretexto para curtir o momento, saí no sábado à tarde vestido de acordo com minha falta de imaginação. Fui todo de preto.

Da pracinha dos bombeiros já se escutava a vibração que vinha do miolo do Centro de Florianópolis. De longe, as batidas e graves se misturavam, formando uma maçaroca sônica indefinível. Ao me aproximar da origem do som, nas imediações do teatro Álvaro de Carvalho, a sensação era igual, só que em volume muito mais alto. Não consegui discernir se o que rolava era funk carioca, sertanejo ou algo em torno disso remixado como um trance difuso.

Atravessei a multidão a caminho da escadaria do Rosário, onde se concentrava o bloco da categoria profissional que tive a graça de escolher. Ali eu sabia que encontraria minha gente & agregados com interesses afins, ainda mais porque o abadá vermelho trazia o Frank desenhado. Mal comecei a desfilar meu carisma pelos degraus e comecei a esbarrar com rostos familiares. Um veterano que eu não via desde a época da universidade riu do meu figurino. Respondi que andava fantasiado o ano inteiro.

A cada passo, um abraço, um sorriso, uma palavra de gentileza. De amigos com quem eu não cruzava havia décadas a conexões estabelecidas em situações específicas, de ex-colegas de redação a figuras das quais não me lembrava o nome, de desconhecidos íntimos a contatos perdidos em alguma troca de celular; todos se desvencilhavam de mim com a mesma frase: “Bom te ver.” Sendo que muitos provavelmente só vão me rever no próximo Carnaval.

A tão anunciada apoteose da folia, a dissipação sem limites, a liberação de tensões represadas e demais clichês anímicos se traduziam em uma explosão de afetos que, para mim, beirava o fraternal. A despeito da ebulição hormonal típica da ocasião, achei que as pessoas estavam mais propensas a ser mais queridas do que sexies – ou ambas, aumentando um poder de sedução que ia além da atração física. Talvez tenha sido apenas o tipo de apelo que o tiozinho aqui emanava.

Contente com a acolhida, continuei descendo e refletindo. A prefeitura fez o que podia para atrapalhar, criando um clima de terror contra um inimigo armado com chope e glitter. Fechou acessos com tapumes, impôs hora para terminar (depois revogada), reforçou a repressão a título de segurança. Nada disso conteve uma manifestação espontânea de alegria, de descarrego, de revitalização da parte central da cidade que nenhuma política pública ou projeto privado jamais será capaz de instituir.

Parei para brincar com minhas sistas (elas sabem quem são) e fui recebido com o carinho e a cumplicidade de sempre. Eu me sentia confortável com a companhia, o ambiente e o repertório defendido por uma bandinha em um palco no sopé. Porém, ah, porém, como cantava Paulinho da Viola, de repente o samba e o axé deram lugar a “Ilariê” e “Uni Duni Tê”. Não tenho o menor saco para música de criança em agito de adulto. Encarei como um sinal.

Tentei relativizar, estava todo mundo bêbado e tal. Lá pelas tantas, trombei com uma repórter com quem trabalhei, uma moça com idade para ser minha filha. Conversamos amenidades, aquele papo-furado inofensivo que denota maturidade, e seguimos adiante. Na despedida, em vez de expressar sua felicidade por ter me visto novamente, ela disse:

— Aproveita aí.

Era a mensagem que eu esperava. Subi correndo e voltei para casa. De domingo para cá, estou me esbaldando com o bloco Unidos do Streaming.

(Extraído da newsletter Extrato. Assine já e garanta o seu exemplar antecipado todas as terças!)



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