20230217

Menos conteúdo e mais arte, por favor



Uma imagem como aquela montagem fotográfica estampada na capa do jornal que se arvora “a serviço da democracia” pode até valer muito mais do que mil palavras. Contanto que a) não sejam sobre a própria imagem b) levem em conta que os envolvidos no processo pesaram as potenciais implicações de sua publicação e escolheram ir em frente.

O resto é o tipo de premissa que não ajuda a animar o debate. Se você tiver que desenhar que a junção de dois momentos que aconteceram formando um terceiro que não aconteceu está bem longe da definição básica de fotojornalismo, já perdeu. Palestrinha purista metida a técnica não importa a ninguém, nem mesmo ao manual de redação do veículo.

Se cabe, se incita (ou excita), se exalta, se incomoda, se ofende, se desafia, depende de como cada um é influenciado por um contexto no qual as noções de razoabilidade se tornaram um pouco dilatadas demais. E é sempre constrangedor o emissor culpar o receptor por não ter entendido uma mensagem que, excluído o Fato, transmitia apenas emoções.

Diversos argumentos foram desembainhados para condenar, absolver, justificar ou contemporizar uma decisão que mostra mais sobre as pessoas físicas e jurídica que a tomaram do que sobre a cena sugerida pela dupla exposição. Entre subestimar a inconsequência e exagerar as consequências, nenhum me abalou mais do que:

Jornalismo não é arte.
O que me atormenta na frase é que ela não dá um benefício à dúvida, uma margem para a interpretação, uma concessão à subjetividade. Tudo é tão categórico, tão definitivo quanto empobrecedor e, ironicamente, contrário ao que pretende proteger. Nunca o jornalismo precisou tanto ser também arte para se manter relevante e atraente.

O que muita gente (inclusive letrada) confunde com empresa jornalística não passa de fábrica de notícias que na maioria dos casos nem notícias são: apenas commodities em busca de sua atenção. Isso pode ser matéria-prima para qualquer coisa, menos jornalismo – ou arte. Conteúdo que chama. Ninguém paga por isso.

Qualquer alfabetizado funcional consegue reproduzir declarações, postagens de subcelebridades em redes sociais, boletins de ocorrências ou releases enviados por assessorias. Seria até despropositado cobrar formação especializada para fazer algo que daqui a pouco a inteligência artificial fará de um jeito mais reto, seco, isento, amoral & barato.

Além de ser um requisito anacrônico para o exercício do conteudismo, a queda da obrigatoriedade do diploma é mais um fator para que o jornalista se acredite artista. Ninguém exige carteirinha profissional de, digamos, um pintor ou uma cineasta. Porque é inegável que o que eles fazem é arte, não um ofício.

Como é arte a reportagem que utiliza recursos narrativos da literatura, o documentário com linguagem de cinema, a foto que captura um instante com várias camadas (não vários instantes com uma camada). O único compromisso é com a realidade, ainda assim mediada por vieses e intenções e interesses do autor e, principalmente, do seu patrão.

Mas o que mais aproxima o jornalismo da arte é a dificuldade crônica de ganhar dinheiro com ambos. De cada dez músicos que conheço, nove se sustentam com alguma atividade afim que não seja suas composições (o outro mora com os pais). Troque tocar covers em barzinhos por escrever até bula de remédio para pagar as contas e chegue ao meu perfil atual.

O que me consola é saber que sempre haverá espaço para canções de amor e boas histórias. Tomara que seja fazendo de conta que ainda é cedo e deixando falar a voz do coração.

(Extraído da newsletter Extrato. Assine já e garanta o seu exemplar antecipado todas as terças!)

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