20220406

Apenas um pouco dos restos de ontem



No dia 4 de janeiro de 1952, o estudante de medicina Ernesto Guevara de la Serna e o bioquímico Alberto Granado sentaram em uma Norton 500 e deixaram Buenos Aires para trás.

A intenção era chegar na Venezuela em abril para comemorar os 30 anos de Granado, percorrendo 8 mil quilômetros pela América Latina. O roteiro foi alterado por tombos, amores e descobertas no meio do caminho. A moto, de 1939, pediu arrego no Chile. Sem “La Poderosa”, a dupla seguiu andando ou de carona.

No aniversário do gordito, os viajantes ainda estavam no Sul do Peru. De Lima, partiram para um leprosário na Amazônia peruana, onde “El Fuser”– como Ernesto era apelidado – aprendeu que não podia levar a vida en el ritmo del chipi-chipi se quisesse entrar para a História.

Na noite de 18 de janeiro de 2005, o fotógrafo portenho-carioca Matias Maxx, o MC Mateus Pinguim, o DJ Castro e o desenhista Juca acomodaram-se na cabine dupla de uma S-10 branca e deixaram o Rio de Janeiro para trás.

A intenção era chegar a Porto Alegre no final do mês para lançar a terceira edição do zine (“revista”, observa Matias) Tarja Preta no Fórum Social Mundial, percorrendo 2 mil quilômetros pelo Sul do Brasil. O roteiro foi enriquecido por festas, caôs, colisões e descobertas no meio do caminho.

A picape, de ano desconhecido, esbarrou de ré em uma caçamba de entulho em Curitiba. Com a traseira desamassada apenas o suficiente para não encostar na roda, o tarjamóvel fez uma escala estratégica em Florianópolis. Da ilha, o bonde partiu para apavorar o Acampamento da Juventude na capital gaudéria, onde o sound system da autointitulada Summer Love Tour operaria verdadeiras revoluções ao som de ragga, dub, reggae e funk-pancadão.

As aventuras de Guevara e Granado foram traduzidas com delicadeza pela lente de Walter Salles e pela trilha de Gustavo Santaolalla no filme Diarios de Motocicleta. As presepadas dos cariocas foram rabiscadas pelo traço toscano de Juca para o Tarja Preta #4.

Na volta, os três (Castro teve que abandonar a barca) pararam novamente em Florianópolis para o Carnaval. Instalados em uma pousada no Rio Tavares, promoveram uma festa à fantasia, invadiram um programa de rádio e definiram o agito da Lagoa da Conceição com uma tirada sagaz: “Favela com surfshops”.

Na Quarta de Cinzas se mandaram para São Paulo, para encerrar a turnê com mais festa e “mijadinho”. Vinte e cinco dias na estrada, 4 mil quilômetros e 3 mil zines (“revistas”, desespera-se Matias) depois, no domingo avistaram o Cristo Redentor.

Tudo isso me veio à lembrança quando achei a coleção completa do Tarja Preta no meio de uma pilha de publicações velhas que não tenho coragem de jogar fora. Na comparação, sou mais o Matias Maxx. Ele só perde no quesito camisetas: as 25 que restaram foram roubadas no último dia do fórum em Porto Alegre. Che continua vendendo as suas até hoje.

(Extraído da newsletter Extrato. Assine já e garanta o seu exemplar antecipado todas as terças!)

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