20220427

Para gostar de ler – e de se lembrar



A frase abre uma crônica de Fausto Wolff sobre o Dia do Escritor em 2005, mas eu sempre me lembro dela em outra data, o Dia Nacional do Livro Infantil, comemorado ontem:

O dia mais feliz da minha vida foi quando eu descobri que sabia ler.
E toda vez é a mesma coisa: fico tentando determinar em que momento o emaranhado de letras que formavam palavras que formavam frases que formavam parágrafos passou a fazer sentido para mim. E sempre falho miseravelmente. Entre cinco e seis anos eu reconhecia nas ruas as logomarcas que via nas propagandas da TV e fingia que as lia. Cravar um ponto, o marco no qual a partir de então deixei de ser analfabeto, porém, nunca consegui.

Meus pais “remediados” – como se identificava a classe média ciente de sua condição – não deixavam faltar material para que eu me exercitasse e desenvolvesse o gosto que demonstrava ter. Foi um hábito que despertou com gibis da Disney, da Turma da Mônica e do Recruta Zero, consolidou-se pelas histórias do hoje canceladíssimo Monteiro Lobato (embora a efeméride acima homenageie seu nascimento) e amadureceu na tímida biblioteca caseira.

Havia um volume grosso, de capa rosa com um desenho do Colosso de Rodes em azul, chamado Maravilhas do Conhecimento Humano. Suas páginas amareladas divididas em Ciências, Filosofia, Literatura e História me apresentaram Sócrates, Aristóteles, Platão, Newton, Galileu, Molière, Voltaire, Balzac e Mark Twain, para citar apenas alguns nomes que me ocorrem agora e que eu não imaginava nem como se pronunciava. Eu me achava mais inteligente só por saber da existência deles.

Lembro também do primeiro livro que me impactou de um jeito diferente, como se me revelasse fatos que a escola não queria que eu aprendesse. Aos 15 anos, eu já ouvira falar da campanha pelas Diretas Já, começado a escutar música que meus pais não curtiam e entendia o que significava o alvorecer da Nova República. Eu não tinha causa, mas tinha mesada para guardar e comprar a obra que justificaria a rebeldia que eu ensaiava: Brasil: Nunca Mais.

Resultado do projeto homônimo encampado pelo cardeal Dom Paulo Evaristo Arns, pelo rabino Henry Sobel e pelo pastor presbiteriano Jaime Wright, o livro escancarava a extensão da repressão política no Brasil de 1961 a 1979. Parecia um filme de terror com um monte de figurões das aulas de Educação Moral e Cívica como protagonistas. Jorrava tanta violência em cada relato extraídos de 707 processos do Superior Tribunal Militar (STM) que era impossível não se revoltar.

Por isso eu me sinto ofendido quando vejo um bananinha debochando de uma grávida torturada. Um gorila fardado rindo de quem foi morto nos porões do regime. Um palhaço postando que “com as pessoas de bem nada aconteceu”. Eles só podem ostentar sua desumanidade porque a conciliação que forjou a redemocratização colocou vítimas e carrascos no mesmo barco. Todos anistiados, para que se zerasse o jogo sem rancor nem mágoas. Demorou para rever esse pacto.

Quase todos os países que enfrentaram governos autoritários puniram seus artífices. Lá, generais morrem inválidos, entrevados, senis – na cadeia ou em prisão domiciliar. Aqui, de velhice – no conforto de seus lares, cercados de condecorações e recebendo suas pensões. Além do devido julgamento, é preciso unificar o passado para que ninguém mais ouse questionar o golpe e a censura, perseguições, torturas, execuções e corrupção ocorridas durante a ditadura militar-empresarial.

Eu queria enaltecer a leitura, acabei pregando o revanchismo. Como alegaria Frank Castle, “não é vingança, é justiça”.

(Extraído da newsletter Extrato. Assine já e garanta o seu exemplar antecipado todas as terças!)

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