20220523

Feliz de quem tem uma vida para mudar



Sábado à tarde, friozinho, ócio bombando. Dia perfeito para praticar uma das máximas de Miranda. Dizia o velhinho que a gente deve comprar um monte de gibi, livro e disco para, quando estiver sem grana, ficar em casa desfrutando as aquisições. Pois bem: estou com os boletos pagos e é chegado o momento de explorar a pilha de quadrinhos arrematados por impulso – tudo pela metade do preço parcelado sem juros no cartão! – na penúltima feira do livro da Unesp, em novembro passado.

Pego Duas Vidas, de Fabien Toulmé. É a história de dois irmãos muito diferentes. Baudouin, o comportado, odeia o emprego de advogado e só segura a onda porque acredita na confortável aposentadoria em um futuro distante. Luc, o rebelde, ama rodar o mundo como médico em missões humanitárias e se diverte como se não houvesse amanhã. Durante uma folga em Paris antes de retornar à África, ele tenta convencer o caçula a “seguir sua estrela” e aproveitar o presente.

Baudouin permanece irredutível, até descobrir que o caroço que surgiu embaixo do seu braço é um tumor incurável. O diagnóstico o leva a deixar tudo para trás e, incentivado por Luc, elaborar uma lista do que gostaria de fazer nos poucos meses que lhe restam. Coisas como quebrar a cara do seu chefe, dizer ao pai que o ama, encontrar uma mulher, tocar guitarra em shows com uma banda e viajar. Daí em diante a trama se desenrola em adoráveis, infalíveis e comoventes clichês.

Vale demais – a começar pela epígrafe, atribuída a Confúcio:

Você tem duas vidas.
A segunda começa quando você percebe que só tem uma.
Não conhecia essa, bateu fundo aqui. Primeiro me lembrei de um pessoal que hoje apoia o horror. Sempre me perguntei o que vai ser deles ao final dessa farsa, já que não terão como esconder de que lado estavam com tantos registros à disposição do tal julgamento da História. Uma pista foi dada por aquela moça que completou o bingo do oportunismo: sem ninguém sentir a sua falta, ela reapareceu ruiva, com os lábios preenchidos, falando em portunhol que se casará com um americano desavisado em Cancún.

E assim suponho que acontecerá com boa parte dos cúmplices. Obrigados a se reinventar, trocarão de penteado, figurino, sotaque e área de atuação, preservando a vocação para o trambique que lhes trouxe a este ponto. Não é difícil imaginar o deputado anabolizado anunciando um suplemento alimentar milagroso, o assessor internacional lançando um método revolucionário de aprender idiomas ou picaretas menores se tornando produtores de conteúdo devidamente monetizados.

Depois de achar graça imaginando suas vidas sendo mudadas por razões nada edificantes, caí na asneira de pensar na minha. Ao contrário de Baudouin, gosto da profissão que tenho e, salvo engano, não estou com uma doença terminal. Também não sou como o próprio Toulmé, um engenheiro civil que trabalhou em vários países (inclusive no Brasil, em João Pessoa) antes de decidir voltar à França para se dedicar aos quadrinhos em 2008. Moro na cidade onde escolhi morar, exercendo meu ofício ao sabor das circunstâncias.

Então por que essa angústia, essa insatisfação, essa sensação de que estou perdendo algo? Melhor pegar outro livro na pilha.

(Extraído da newsletter Extrato. Assine já e garanta o seu exemplar antecipado todas as terças!)

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