20220504

Pelo direito de ter os próprios fatos



Depois da picanha que não é picanha, a costela que não é costela. Tudo certo, tudo normal, tudo a ver com este bioma em que a mentira não é mentira. A partir do momento em que foram institucionalizadas as fake news, a pós-verdade, a realidade alternativa, não há nada de mais em vender uma mercadoria e entregar outra. Se, além de opiniões, qualquer um pode ter os seus próprios fatos, isso é simplesmente o capitalismo jogando o jogo.

A artimanha individual se profissionalizou e atingiu escala industrial. O dono da mercearia sentava o dedo na balança para a verdura pesar mais. Os fabricantes reduzem o tamanho do chocolate e a quantidade de bolachas sem diminuir o preço. O ambulante oferecia o folclórico espetinho de gato. As cadeias de lanchonetes anunciam sanduíches com um tipo de carne que nem carne é, quanto mais do tipo anunciado.

O setor de alimentação é o que melhor se adaptou à patranha, chegando a um nível de sofisticação que torna lícito um suco de determinada fruta conter menos de 1,5% de suco de qualquer fruta. Se der problema, basta soltar um comunicado lamentando que o consumidor espere por algo correspondente ao nome com o qual se apresenta. Coisa de gente careta que não sabe valorizar o aroma, o sabor, a experiência.

Mas a supremacia da sugestão avança por todas as áreas. O papel higiênico que você descobriu que encolheu 10 metros justamente quando mais precisava dele é apenas o lado menos sujo desse conluio. Da operadora de internet cuja velocidade de conexão é inferior à metade do pacote comercializado à popularização do adjetivo “novo” para designar a lesma lerda, o faz-de-conta triunfa em um mundo cada vez mais infantilizado.

Ingênuo que sou, sempre achei que um dia a picaretagem generalizada iria provocar uma revolta de iguais proporções. Pois não só não provocou como despertou vocações, criou modelos de negócios e cevou carreiras. Agora sonho com um mercado em que a manicure ganhe pelas unhas que não fez, o encanador cobre pelo vazamento que não consertou, o jornalista receba pela reportagem que não escreveu. O metaverso é aqui.

(Extraído da newsletter Extrato. Assine já e garanta o seu exemplar antecipado todas as terças!)

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