20220516

O que sobra para nós é ser melhor



Quase não falo de música aqui, mas não dá para deixar passar batido um disco do tamanho de Sobre Viver, de Criolo. Como tudo o que envolve o artista, o álbum chegou na última quinta cercado de toda uma expectativa promocional. Tem sido assim antes mesmo de sua estreia como ex-Doido: Nó na Orelha nem havia se revelado e já era considerado um dos melhores de 2011, divisor de águas e outros superlativos quetais. Não seria agora, com nome estabelecido no mercado, que ele receberia tratamento diferente.

Sobre Viver é seu primeiro disco “à vera” desde 2014, quando Convoque seu Buda emanava alguma esperança diante de um país que se deteriorava. De lá para cá, enquanto o pior cenário se consumou e não para de se superar, Criolo caiu no samba com Espiral de Ilusão (2017). A estética urbana e o discurso combativo ficaram restritos a singles pontuais, afinados com o espírito da época – quem quiser entender o que rolou em 2018 basta ouvir Boca de Lobo, lançada às vésperas das eleições daquele ano.

Nesse novo trabalho, a mensagem contundente associada ao rap se insinua muito mais na essência do que na música. A maioria das dez canções desmente o que a predominância da dupla Tropkillaz (parceira nos singles Sistema Obtuso, de 2020, e Cleane, de 2021) na produção sugeriria. Nunca a ponte que Criolo perseguiu com outros estilos esteve tão evidente, a ponto de mal se distinguir seu gênero de origem. Ritmo & poesia a serviço de algo muito parecido com o que antigamente se chamava MPB.

O rótulo é vago de propósito, para caber tantas referências. A sigla comporta a tabelinha com Milton Nascimento em “Me Corte na Boca do Céu a Morte Não Pede Perdão”, por mais inusitado que seja ouvir o solene mineiro falando “biqueira”. Acomoda raízes afro-caetânicas com leveza e elegância em “Ogum Ogum” e “Yemanjá Chegou”. E acena para o reggae em “Moleques São Meninos, Crianças São Também”, confirmando a manha jamaicana já demonstrada nas clássicas “Samba Sambei” e “Pé de Breque”.

Que bom que ele está nessa(s) onda(s), porque anda escrevendo de um jeito que não evita uma certa pieguice quando embalado por sonoridades mais, digamos, ferozes. É um tal de Pai aqui, citação bíblica ali, salve as criancinhas acolá em um misto de moralismo e culpa cristã de fazer Damares se orgulhar. Sorte que “Quem Planta Amor Aqui Vai Morrer” desvirtua no flow ininteligível e “Diário do Kaos” remete a um Belchior da quebrada, se não nem os manos iriam aturar essa vocação entre guru e coroinha.

A seriedade vem do luto pela irmã Cleane (morta de covid em 2021 e homenageada também em “Pequenina”) e das broncas permanentes que se acentuaram. Há que se respeitar e se admirar. É tudo muito maduro, muito adulto, muito condizente com um cara de 46 anos e mentalidade equivalente. Eu gostei, o que devia ser motivo de preocupação para Criolo: ao atrair gente da mesma geração, talvez Sobre Viver não faça tanto sucesso com os mais jovens. A não ser os chatos.

(Extraído da newsletter Extrato. Assine já e garanta o seu exemplar antecipado todas as terças!)

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