20220530

Por dentro do mercado de influência



Vivemos no mais interessante dos tempos. Para se irritar, então, o leque de opções é amplo e vasto. A barra anda tão pesada que hoje vou até pegar leve. Vou me aborrecer apenas com a exigência de viralizar em rede social, conforme denúncia da cantora Halsey. Não se trata de uma prática nova nem restrita à música, apenas reforça a certeza de que a submissão ao ambiente digital está sempre se superando. Por qualquer ângulo que se analise, tudo é de um ridículo desesperador.

Veja bem, a reclamação parte de uma artista que vendeu 165 milhões de discos em oito anos, não de uma subcelebridade revelada em um reality show e esquecida um mês depois. Se um nome com esse histórico precisa de likes, curtidas e compartilhamentos para ser lançado, algo parece muito fora de propósito. Ou a indústria fonográfica (como se diz por aí) é burra ou é escrota – as condições não são excludentes, o que se conecta à seguinte exclamação:

A cantora reclama da gravadora! Sim, elas ainda existem e ainda apitam na carreira de seus empregados. No mundo virtual, as gravadoras desapareceriam porque qualquer um pode fazer e distribuir sua arte, dispensando intermediários para atingir o público. No mundo real, para cada sucesso espontâneo com milhões de views há milhões de cases que ninguém viu. E que só serão vistos se forem impulsionados por um dinheiro que vai sair do bolso de alguém.

Ganha um pacote vitalício de 5G quem acredita em engajamento orgânico em escala. O hit que não sai da sua timeline pode ter sido cultivado em fazendas de cliques, serviço que faz a ponte entre explorados em busca de “uma renda extra pela internet” e contas que têm que bombar para viabilizar seu modelo de negócio. Interagiu, recebeu. Com investimento adequado, a manipulação vira uma estratégia aceita e validada pelos resultados do “mercado de influência”.

Resumindo, o músico que antes dependia da gravadora agora depende (às vezes) da gravadora e (sempre) do algoritmo. Melhor para alguns, pior para muitos. Vem acontecendo o mesmo na literatura: o número de seguidores de um escritor pode ser determinante para uma editora decidir publicá-lo. Pelos critérios atuais, um Salinger, um Pynchon, reclusos notórios, morreriam inéditos. Quando o produto é o autor, não a obra, arte vira concurso de popularidade.

Eu teclei arte? Esqueça. “Tudo é marketing”, acusa Halsey. E requentado: músicas com no máximo três minutos de duração, pagar por promoção, testar a reação do potencial consumidor, culto ao ego; tudo isso vigora no pop há pelo menos 50 anos. Mas o mainstream comportava também outros formatos que eu já julgava consolidados, com espaço garantido e reconhecido – como as conquistas democráticas que a gente pensava que nunca mais seriam ameaçadas. Acorda, Pedrinho!

(Extraído da newsletter Extrato. Assine já e garanta o seu exemplar antecipado todas as terças!)

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